Crítica | O Rei Leão – O que eu quero mais é o fim desses remakes
O Rei Leão, enquanto proposta, já nasceu morto. Não financeiramente, é claro. Já faz décadas que a Disney aprendeu a dominar o imaginário de toda uma geração para depois de décadas lucrar em cima da nostalgia quando essa geração ganha poder aquisitivo. Mas se antes essa estratégia se manifestava em infindáveis continuações dos filmes clássicos lançados para DVD, produzidas da forma mais barata possível nos estúdios internacionais da Disney, hoje regurgitar nostalgia é uma iniciativa muito mais importante para a corporação. O Rei Leão ostenta o seu orçamento de 200 milhões com o orgulho digno de quem tem à sua disposição os melhores artistas e técnicos do mercado para criarem do zero um mundo extremamente detalhado, com um elenco de dar inveja para dar vida aos personagens que marcaram uma geração. É uma pena então que o produto final não passe de uma imitação fraca e sem vida do clássico de 1994, dedicado a descartar toda a identidade e charme do original, criando uma “modernização” cínica e previsível que estraga tudo o que toca.
Inicialmente, a recriação fotorrealista da savana africana parece uma façanha impressionante. De fato, a sequência de abertura é algo majestoso, com manadas inteiras de animais extremamente bem detalhados realizando coisas que seriam impossíveis de controlar na realidade. A fidelidade e detalhismo dos leões em especial são um marco tecnológico. Mas a novidade passa muito rápido e em pouco tempo ficam escancaradas as limitações da decisão criativa de pôr o realismo acima de tudo.
Além da sequência inicial, parece que toda decisão criativa foi feita com o objetivo de deixar o filme menos majestoso possível. Se prepare para um filme esteticamente morto. O uso de cores do original, com névoas verdes do cemitério de elefantes e a sequência psicodélica de “O que eu quero mais é ser rei”, aqui são reduzidas a tons de marrom e amarelo. A aversão a qualquer estilização significa que as sequências mais criativas do original como “Hakunah Matata”, ”O que eu quero mais é ser rei” e “Se preparem” são mutiladas, reduzidas a personagens cantando enquanto andam em linha reta, sem nenhum dinamismo (A última foi inexplicavelmente cortada pela metade).
Até mesmo os planos copiados diretamente do original são desprovidos de vida sem as cores e estilização, e o fotorrealismo não consegue compensar a falta de impacto resultante disso. Os designs dos animais são, por natureza, tão inexpressivos e com linguagem corporal nula, que acabam limitando a interpretação dos atores. Simba e Nala juntos são indistinguíveis senão pela voz. As hienas perdem a individualidade e personalidade, roubando toda a energia que os personagens tinham. O arco emocional do Simba é sabotado por um rosto que, independente de estar triste, alegre, apaixonado ou com raiva, tem sempre a expressividade de um rótulo de chá-mate. O Scar, que alternava entre ironia, afetação e a intimidação é um vilão invejoso genérico. Até o James Earl Jones como Mufasa, única voz do original a retornar, perde a imponência com a falta de expressão da sua contraparte felina. É uma escassez estética que é triste de ver da adaptação do filme que fez toda uma geração de crianças achar insetos apetitosos.
Das qualidades do filme, vale mencionar Timão e Pumba. A interpretação de Billy Eichner e Seth Rogen conseguem transcender a falta de vida dos modelos de javali e suricato e dar algum dinamismo para o filme. Outro ponto, e o único que a direção fotorrealista contribuiu para a história, foi a batalha final entre Simba e Scar. A fotografia de Caleb Deschanel consegue retratar a brutalidade da luta entre dois leões, realçada com o fogo consumindo tudo no fundo. É a única cena realmente inspirada no filme.
Uma pena que o diretor Jon Favreau, que conseguiu reimaginar tão bem outro clássico da Disney em Mogli, o Menino Lobo, junto com toda sua equipe e elenco, trazer um trabalho tão desastroso. É um desperdício de recursos e talento, que me deixa pensando como essa tecnologia e talento poderiam ser usados numa história original. E a Disney também. São claras as intenções que a Disney tem com esse filme. Além do dinheiro garantido com o público nostálgico e seus filhos, o filme serve como uma ótima demonstração das tecnologias de animação, efeitos especiais e fotografia virtual que foram desenvolvidas e aprimoradas para esse filme, além de testar a receptividade do público a essas novas técnicas e seus possíveis usos no futuro. A ambição de abocanhar prêmios também é clara, e a Disney estar promovendo o filme como “live-action” também a livra do estigma da animação, principalmente a 2D, sendo coisa de criança. O maior estúdio de animação de Hollywood com vergonha do próprio legado.
O Rei Leão é emblemático de toda a estratégia dos remakes da Disney: Um filme completamente desnecessário que usa o legado do original para desperdiçar os talentos de todos os envolvidos criando um produto que tira tudo de especial da obra, em quase toda tentativa de mudança é mal implementada e as únicas qualidades são méritos do original. É um filme que demora 30 minutos a mais que o original para contar a mesma história e não acrescenta em nada. Ambientação, atmosfera, emoção e identidade são todos sacrificados no altar do realismo. A única coisa que me empolga com esse filme é o potencial que a tecnologia pode proporcionar para produções futuras.
Mas estamos falando da Disney, então provavelmente vai ser desperdiçada num remake de Bambi ou coisa parecida. Afinal, o ciclo sem fim de reciclagem da empresa tem que continuar.