Coringa | Uma bela estética não consegue esconder um filme raso
Coringa é um filme extremamente cínico. Não apenas no tom e visão de mundo que a história do filme se propõe a contar, mas também no próprio conceito do filme. Desde que o filme foi anunciado, a Warner Bros. e o diretor Todd Phillips (trilogia Se Beber Não Case) sempre descreveram esse filme como sendo um “thriller de crime no estilo dos filmes de Scorcese da década de 80”, sendo que o próprio estava envolvido na produção. Essa descrição sempre me cheirou como “isca de Oscar”, aqueles que parecem ter cada aspecto friamente calculado para se igualarem aos tipos de filmes que ganham Oscar, numa tentativa de serem notados pelos juris-de-premiação-senpai. De fato, o diretor recentemente admitiu que queria “Fazer um filme de verdade, com um roteiro de verdade e chamar de Coringa”. Como se o personagem e o universo de quadrinhos fossem só uma concessão, uma garantia financeira para Phillips poder realizar sua visão artística de um filme “adulto”, que na visão dele, envolve tirar todas as características que tornam filme de super-herói únicos e substituir por estéticas de Nova Hollywood dos anos 70. O resultado acaba ficando aquém de ambas as inspirações.
O filme é totalmente centrado em Arthur Fleck, um palhaço profissional com aspirações de se tornar comediante que sofre com diversas doenças mentais, sendo a principal delas um incontrolável ataque de risos em situações estressantes, que sempre se manifesta nos momentos mais inoportunos. Ambientado em 1981 numa ̶N̶o̶v̶a̶ ̶I̶o̶r̶q̶u̶e̶ Gotham City decadente, onde uma greve de lixeiros deixou o lixo amontoado nas ruas e a população é abandonada à própria sorte, Arthur sofre todo tipo imaginável de dificuldades, como ter que cuidar da mãe delirante, com o desrespeito no trabalho e uma assistente social que não se importa com ele; tudo dá tão errado na vida de Arthur que quase parece uma piada. Mas a interpretação primorosa de Joaquim Phoenix consegue trazer todo o peso deste personagem para a cena na sua vida cotidiana melancólica, patética e sem rumo, com frustrações e ineptidões internalizadas que o deixam travado, até o momento em que um surto inesperado de risos agonizantes escapa. E quando as frustrações de Arthur passam do limite e ele começa a cometer atrocidades, ele finalmente se solta, e podemos ver por fora a pessoa que ele é por dentro. O Arthur que antes era apenas sugerido em sutis expressões faciais, se torna um novo homem, pleno, dançante e assustadoramente sorridente. O trabalho do ator é sutil, minucioso e carrega todo o filme. Para o bem e para o mal.
O diretor Todd Phillips emprega todos os recursos possíveis para fazer deste filme a mais autêntica homenagem aos filmes da Nova Hollywood dos anos 70 e 80. Os longos planos atmosféricos das ruas sujas de Gotham, a iluminação e direção de cena ostentam orgulhosamente suas inspirações de filmes como Taxi Driver, Perdidos na Noite e O Rei da Comédia. E como uma recriação estética, o filme não peca. Os problemas começam a se tornar aparentes quando a trama desenrola sem ir para lugar nenhum.
Por melhor caracterizado que Joaquim Phoenix esteja, nenhum ator consegue melhorar um material fraco, e infelizmente, o filme de Phillips desperdiça um personagem interessantíssimo com um roteiro sem nada a dizer. O filme dá deixas de vários possíveis comentários sociopolíticos sobre como a sociedade trata os que sofrem de doenças mentais e questões de classe, com uma subtrama em que um discurso de Thomas Wayne (Brett Cullen) acaba causando uma revolta da população. Mas conforme o filme se alonga fica óbvio que o diretor não tem capacidade de abordar nenhum dos temas que levanta com uma mínima profundidade, e o protagonista moralmente degenerado não serve à nenhuma mensagem maior do filme, chegando ao cúmulo de ter que dar um monólogo totalmente didático sobre suas motivações, coisa que deveria ter sido demonstrada no filme. Grande parte do que torna filmes como Laranja Mecânica, Taxi Driver, O Rei da Comédia, Clube da Luta e outros clássicos são a critica cultural que os filmes passam através dos atos do seus protagonistas. Para Phillips, o protagonista violento é só mais um detalhe estético a ser imitado dos filmes que se inspira.
E isso mostra o quão rasa é a visão de Phillips para com suas inspirações, que forma Coringa a partir de uma colcha de retalhos de elementos de diversos clássicos, sem entender a essência de nenhum deles. Uma reviravolta em particular na metade do longa é completamente postiça à história e parece estar lá por que é o tipo de coisa que acontece num filme desses. De fato, parece que o filme foi feito preenchendo uma lista: Personagem principal problemático? Confere. Estética suja e decadente? Confere. Violência perturbadora? Confere. Robert de Niro no elenco? Confere. Pronto, temos um filme adulto e relevante.
Coringa é um filme que não faz jus nem ás histórias clássicas do personagem nem aos filmes que tanto admira, apesar de nos dar uma interpretação do personagem digna de Mark Hamill, Heath Ledger e Jack Nicholson. É um que filme despe um universo rico de suas características próprias e coloca roupagens de filmes que são considerados “prestigiosos” numa tentativa juvenil de ser levado a sério, um retrocesso em relação a filmes como O Cavaleiro das Trevas, Logan ou Pantera Negra, que tratam os elementos “quadrinhescos” não como um empecilho para se contar uma mensagem relevante, mas sim uma ferramenta. O resultado é um filme cínico, uma imitação barata de filmes melhores que não entende suas inspirações e não chega aos pés dos quadrinhos, filmes e animações do personagem que o estrela.