Artigo | A Nintendo não salvou a indústria dos videogames, mas a revolucionou
A indústria do videogame, que se aproxima de completar seus primeiros cinquenta anos, é como uma estante de livros cheios de histórias interessantes, importantes e intrigantes. No entanto, muitas destas histórias foram contadas e recontadas diversas vezes, pelas mais variadas fontes e impulsionadas pelos mais variados interesses. E em certos casos, parte da indústria escolheu moldar uma versão mais conveniente da história de acordo com seus próprios interesses. Assim como acontece nas guerras, no constante conflito comercial inerente à indústria, a verdade é a primeira vítima, e constantemente, a história é contada pela ótica dos vencedores. Versões mais comercialmente interessantes da verdade tomam a forma de “curiosidades”, burburinhos, rumores, e num efeito similar ao de uma bola de neve, vão se consolidando no imaginário popular até serem aceitas como fatos, de modo que se torna progressivamente mais difícil convencer o público de que ele foi enganado por muito tempo.
Em uma indústria na qual disputas de ego entre fãs e o culto à marcas e empresas são comuns ao grande público consumidor, não é surpresa alguma que diversas partes com interesses financeiros se aproveitem da situação alimentando a alienação da massa consumidora, consequentemente se beneficiando no processo.
A primeira coisa que precisa ser esclarecida é que a indústria de videogames como um todo (e entenda que quando se fala em videogames, fala-se em jogos eletrônicos e não apenas em consoles) não esteve em crise ou à beira do fim em ponto algum da história. É importante estabelecer isso pois há quem sustente a ideia de que, quando se questiona a ideia da Nintendo como tendo sido salvadora dos videogames, uma resposta comum é a de que essa afirmação seria relativa ao mercado de consoles, o que também não é verdade. Há ainda um adendo a essa resposta comum, que já reduz significativamente o suposto feito da Nintendo, afirmando que a empresa de Kyoto seria responsável por salvar a falida indústria de consoles nos Estados Unidos – o que, embora esteja um pouco mais próximo da realidade do que as outras afirmações, ainda não é verdade.
mas fecharam as portas antes mesmo de serem capazes de lançar oficialmente seus jogos no mercado, como a Data-Age e a US Games. Algumas empresas, como a Kandy Man Sales, compraram estoques destes jogos fabricados mas não lançados, a preço de sucata, e os repassaram para o varejo a preços baixos.
A oferta de jogos baratos era tão grande que o grande público não via motivo de comprar novos lançamentos a preço cheio, o que fez com que as empresas donas destes novos jogos precisassem aplicar descontos rapidamente para mover seus estoques. O resultado foi um desastre financeiro, pois os jogos vendidos a preço descontado não cobriam seus custos de produção e ainda vendiam menos do que os jogos mais baratos, e como jogos novos não paravam de chegar às lojas, o acumulo de títulos nas prateleiras era maior e forçava cada vez mais descontos. O público em geral não sentiu um abalo na indústria, pois via uma enxurrada de jogos novos nas lojas e preços convidativos. Mas a maioria das empresas que, sem preparo ou planejamento algum, entraram nesse mercado, acabaram da forma como qualquer empresa em outro segmento acabaria ao se portar desta forma.
O mercado não desacelerou, e quando a Nintendo finalmente chegou nos EUA, por via própria com o NES, o mercado americano de consoles já estava se recuperando do período de saturação e consequente fechamento de várias empresas. Curiosamente, a mesma Atari que muitos apontam como sendo responsável pela crise, quase foi a responsável por lançar o Famicom nos Estados Unidos e no resto do mundo, com exceção do mercado japonês, obviamente.
No entanto, a mais importante contribuição da Nintendo para com o mercado americano, e consequentemente, para a indústria dos jogos eletrônicos como um todo, foi a forma como a empresa decidiu se portar no mercado, marcada pelo modelo de marketing agressivo da empresa, que foi desde a criação da revista Nintendo Power até a produção de um longa metragem – The Wizard – para promover o lançamento de Super Mario Bros. 3 no mercado americano, assim como diversas brigas judiciais contra outras empresas – como a Atari/Tengen, por exemplo – a fim de evitar que jogos não licenciados para o NES fossem distribuídos no mercado. A Nintendo estabelecia então, pelas mãos de Minoru Arakawa, Howard Lincoln e Hiroshi Yamauchi, aquelas que seriam as bases do modelo de mercado que viria a ser o padrão da indústria por anos, e que resultou na época em um domínio quase absoluto do mercado americano, no qual a Nintendo chegou a projetar para o ano de 1989 um valor de U$ 3.4 bilhões em vendas, com 77% do market share. Na década seguinte, outras empresas viriam a disputar mercado com a Nintendo, mais notavelmente a SEGA e a Sony, utilizando muitas das estratégias que a própria Nintendo havia utilizado anteriormente, como as campanhas publicitárias provocativas e agressivas da SEGA com o Genesis/Mega Drive e o memorável anúncio do preço do Playstation original, que seguia a mesma filosofia que Hiroshi Yamauchi usara ao lançar o Famicom em 1983 no Japão com um valor extremamente convidativo e acessível para o hardware que entregava.
Com o passar dos anos, muitas daquelas crianças entraram na indústria, seja como desenvolvedores, empresários ou jornalistas, mas aquela informação que consumiram ainda estava em suas cabeças. A magia em volta do mito de salvação de seu hobby favorito, que os levou a ingressar na indústria, não era questionada pela maioria; pelo contrário, a história foi sendo recontada de modo a ser considerada a versão oficial da história. Mais tarde, com o advento da popularidade da distribuição de vídeos amadores na internet em sites especializados, fóruns de discussão e posteriormente, o surgimento do Youtube, muitos entusiastas e fãs de videogame passaram a criar vídeos nos quais falavam sobre seu hobby favorito, e como a maioria esmagadora dos vídeos populares nessa época (e a bem da verdade, ainda hoje) era composta por americanos que cresceram lendo e ouvindo essas histórias sem pesquisar mais a fundo (com algumas exceções), o mito de que a Nintendo teria salvo os jogos eletrônicos foi sendo perpetuado e propagado para milhões de pessoas do mundo inteiro. Obviamente, pessoas de fora dos Estados Unidos e até mesmo muitos americanos que viveram a época e sabiam que o tal mito não refletia a realidade rejeitaram esta ideia, mas anos de propagação de uma versão romantizada (e deveras alterada) da história ainda fazem com que muitos se recusem a acreditar que o mito de salvação não é verdadeiro. No entanto, é ponto pacífico que a Nintendo revolucionou o mercado americano, e por consequência, o mercado global de consoles caseiros, o que é um fato a ser celebrado não só pela importância que teve, mas também por ter sido algo que aconteceu de verdade.