Artigo | A Nintendo não salvou a indústria dos videogames, mas a revolucionou



A indústria do videogame, que se aproxima de completar seus primeiros cinquenta anos, é como uma estante de livros cheios de histórias interessantes, importantes e intrigantes. No entanto, muitas destas histórias foram contadas e recontadas diversas vezes, pelas mais variadas fontes e impulsionadas pelos mais variados interesses. E em certos casos, parte da indústria escolheu moldar uma versão mais conveniente da história de acordo com seus próprios interesses. Assim como acontece nas guerras, no constante conflito comercial inerente à indústria, a verdade é a primeira vítima, e constantemente, a história é contada pela ótica dos vencedores. Versões mais comercialmente interessantes da verdade tomam a forma de “curiosidades”, burburinhos, rumores, e num efeito similar ao de uma bola de neve, vão se consolidando no imaginário popular até serem aceitas como fatos, de modo que se torna progressivamente mais difícil convencer o público de que ele foi enganado por muito tempo.

Em uma indústria na qual disputas de ego entre fãs e o culto à marcas e empresas são comuns ao grande público consumidor, não é surpresa alguma que diversas partes com interesses financeiros se aproveitem da situação alimentando a alienação da massa consumidora, consequentemente se beneficiando no processo.

O “cemitério” de jogos da Atari, em Alamogordo nunca foi um mistério ou mito como muitos pregaram no Youtube, sendo fato conhecido na época e recebendo até cobertura em jornal.

A primeira coisa que precisa ser esclarecida é que a indústria de videogames como um todo (e entenda que quando se fala em videogames, fala-se em jogos eletrônicos e não apenas em consoles) não esteve em crise ou à beira do fim em ponto algum da história. É importante estabelecer isso pois há quem sustente a ideia de que, quando se questiona a ideia da Nintendo como tendo sido salvadora dos videogames, uma resposta comum é a de que essa afirmação seria relativa ao mercado de consoles, o que também não é verdade. Há ainda um adendo a essa resposta comum, que já reduz significativamente o suposto feito da Nintendo, afirmando que a empresa de Kyoto seria responsável por salvar a falida indústria de consoles nos Estados Unidos – o que, embora esteja um pouco mais próximo da realidade do que as outras afirmações, ainda não é verdade.

Artigo do New York Times, no início de 1983, falando sobre como a oferta de jogos ao varejo era farta e como já se projetava que a enorme quantidade de cartuchos poderia se tornar um problema para o mercado.

mas fecharam as portas antes mesmo de serem capazes de lançar oficialmente seus jogos no mercado, como a Data-Age e a US Games. Algumas empresas, como a Kandy Man Sales, compraram estoques destes jogos fabricados mas não lançados, a preço de sucata, e os repassaram para o varejo a preços baixos.

A oferta de jogos baratos era tão grande que o grande público não via motivo de comprar novos lançamentos a preço cheio, o que fez com que as empresas donas destes novos jogos precisassem aplicar descontos rapidamente para mover seus estoques. O resultado foi um desastre financeiro, pois os jogos vendidos a preço descontado não cobriam seus custos de produção e ainda vendiam menos do que os jogos mais baratos, e como jogos novos não paravam de chegar às lojas, o acumulo de títulos nas prateleiras era maior e forçava cada vez mais descontos. O público em geral não sentiu um abalo na indústria, pois via uma enxurrada de jogos novos nas lojas e preços convidativos. Mas a maioria das empresas que, sem preparo ou planejamento algum, entraram nesse mercado, acabaram da forma como qualquer empresa em outro segmento acabaria ao se portar desta forma.

Coluna de Michael Blanchet na edição do dia 8 de setembro de 1983 do jornal Milwaukee Sentinel, na qual fala-se sobre os problemas da Data Age e como o mercado já se mostrava um tanto quanto diferente em comparação com o ano anterior, e como tantos dos jogos anunciados para 83 nunca chegaram às lojas, ao menos não da forma inicialmente planejada.

O mercado não desacelerou, e quando a Nintendo finalmente chegou nos EUA, por via própria com o NES, o mercado americano de consoles já estava se recuperando do período de saturação e consequente fechamento de várias empresas. Curiosamente, a mesma Atari que muitos apontam como sendo responsável pela crise, quase foi a responsável por lançar o Famicom nos Estados Unidos e no resto do mundo, com exceção do mercado japonês, obviamente.

Protótipo do NES apresentado em Chicago na Summer CES, em Junho de 85, 5 meses após levarem o Nintendo AVS na Winter CES em Janeiro do mesmo ano.

Minoru Arakawa e Howard Lincoln, provavelmente os maiores responsáveis pelo sucesso do NES nos Estados Unidos.

No entanto, a mais importante contribuição da Nintendo para com o mercado americano, e consequentemente, para a indústria dos jogos eletrônicos como um todo, foi a forma como a empresa decidiu se portar no mercado, marcada pelo modelo de marketing agressivo da empresa, que foi desde a criação da revista Nintendo Power até a produção de um longa metragem – The Wizard – para promover o lançamento de Super Mario Bros. 3 no mercado americano, assim como diversas brigas judiciais contra outras empresas – como a Atari/Tengen, por exemplo – a fim de evitar que jogos não licenciados para o NES fossem distribuídos no mercado. A Nintendo estabelecia então, pelas mãos de Minoru Arakawa, Howard Lincoln e Hiroshi Yamauchi, aquelas que seriam as bases do modelo de mercado que viria a ser o padrão da indústria por anos, e que resultou na época em um domínio quase absoluto do mercado americano, no qual a Nintendo chegou a projetar para o ano de 1989 um valor de U$ 3.4 bilhões em vendas, com 77% do market share. Na década seguinte, outras empresas viriam a disputar mercado com a Nintendo, mais notavelmente a SEGA e a Sony, utilizando muitas das estratégias que a própria Nintendo havia utilizado anteriormente, como as campanhas publicitárias provocativas e agressivas da SEGA com o Genesis/Mega Drive e o memorável anúncio do preço do Playstation original, que seguia a mesma filosofia que Hiroshi Yamauchi usara ao lançar o Famicom em 1983 no Japão com um valor extremamente convidativo e acessível para o hardware que entregava. 

Primeiro volume da Nintendo Power, publicação que foi peça-chave do marketing da Nintendo of America e sua estratégia de dominação do mercado americano da segunda parte dos anos 80 em diante.


Com o passar dos anos, muitas daquelas crianças entraram na indústria, seja como desenvolvedores, empresários ou jornalistas, mas aquela informação que consumiram ainda estava em suas cabeças. A magia em volta do mito de salvação de seu hobby favorito, que os levou a ingressar na indústria, não era questionada pela maioria; pelo contrário, a história foi sendo recontada de modo a ser considerada a versão oficial da história. Mais tarde, com o advento da popularidade da distribuição de vídeos amadores na internet em sites especializados, fóruns de discussão e posteriormente, o surgimento do Youtube, muitos entusiastas e fãs de videogame passaram a criar vídeos nos quais falavam sobre seu hobby favorito, e como a maioria esmagadora dos vídeos populares nessa época (e a bem da verdade, ainda hoje) era composta por americanos que cresceram lendo e ouvindo essas histórias sem pesquisar mais a fundo (com algumas exceções), o mito de que a Nintendo teria salvo os jogos eletrônicos foi sendo perpetuado e propagado para milhões de pessoas do mundo inteiro. Obviamente, pessoas de fora dos Estados Unidos e até mesmo muitos americanos que viveram a época e sabiam que o tal mito não refletia a realidade rejeitaram esta ideia, mas anos de propagação de uma versão romantizada (e deveras alterada) da história ainda fazem com que muitos se recusem a acreditar que o mito de salvação não é verdadeiro. No entanto, é ponto pacífico que a Nintendo revolucionou o mercado americano, e por consequência, o mercado global de consoles caseiros, o que é um fato a ser celebrado não só pela importância que teve, mas também por ter sido algo que aconteceu de verdade.