Crítica | O Dilema das Redes – distopia e psicopolítica
Lançado em setembro, O Dilema das Redes, o mais novo documentário da Netflix dirigido por Jeff Orlowski, vem recebendo bastante atenção por abordar um grave problema que se desenvolve no uso das redes sociais. O documentário traz depoimentos de criadores e ex-funcionários de alto nível do Google, Facebook, YouTube, Twitter e outras plataformas de mídias sociais, e vemos com mais profundidade os grandes riscos que o uso dessas redes proporcionam, não só no nosso comportamento individual mas em todos níveis de nossos grupos sociais, chegando à afetar — e decidir — nosso futuro político.
Logo no início do documentário nos deparamos com uma frase do dramaturgo grego Sófocles, perfeita para abstrair a visão que a maioria das pessoas tem sobre as redes sociais. Também a visão otimista que os desenvolvedores tiveram ao criar seus conceitos e paradigmas. Vemos a utilidade e a imediatidade como um aspecto positivo e revolucionários das mídias, mas existe a presença do lado negativo, da ‘maldição’. E é nesse aspecto negativo que embarcamos do inicio ao fim em O Dilema das Redes.
“Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição” SÓFOCLES
Basicamente, todas nossas atividades em sites como Facebook, Google e Instagram são catalogadas por um algoritmo que calcula e melhora — de forma autônoma — os próximos conteúdos que veremos, despejando notificações, propagandas e outros meios que buscam a atenção do ‘usuário’. O problema nisso é que ao utilizar estas mídias nos tornamos um produto, num mercado que investe no mundo digital para que seus anúncios cheguem à nós e mudem nosso comportamento.
Isto fica visível ao nos depararmos com uma narrativa ficcional que mostra a mudança comportamental de um jovem conforme utiliza as redes. Esse ponto em O Dilema das Redes tem um carácter meio Black Mirror, e é cômico — pra não dizer assustador.
Durante as declarações observamos as ideias primárias nessas estratégias, que foram muito propagadas no Vale do Silício. Todos designers e desenvolvedores pareciam ter intenções idealistas no começo de suas atividades, mas os mesmos reconheceram posteriormente o grande erro que cometeram na forma de submeter esta tecnologia ao modelo de mercado atual. Todos parecem profundamente arrependidos e entende-se o porquê: através de seus trabalhos, os usuários de redes sociais se tornaram mais suscetíveis à diversos problemas e grande parte teve seu comportamento adaptado pra esse meio distorcido da realidade.
Em A Rede Social (2010) de David Fincher, visualizamos a prosperidade do Facebook e de uma geração de jovens gênios que iriam mudar o mundo através da internet, indo na contramão das antigas formas de negócio e se colocando como os novos diretores, como ilustrava o cartão de Mark Zuckerberg: “I’m the CEO, bitch”. Porém aqui vemos o grande revés nisso tudo, e estes antigos jovens já estão adultos e desesperados para consertar este grande problema.
A imagem do próprio Mark Zuckerberg nos tribunais norte-americanos remete bem à situação, quando o mesmo foi interrogado por fornecer dados de 87 milhões de usuários para a empresa de Big Data chamada Cambridge Analytica. Esta situação foi decisiva para as eleições de 2016 nos EUA, onde a Rússia teve grande influência por fazer proveito dos dados do próprio Facebook.
Esta questão política também é abordada em O Dilema das Redes, e retrata bastante a queda das democracias, por conteúdos políticos sem credibilidade que são recomendados para os usuários através dos algoritmos. De fato o Facebook já é responsável por acabar com democracias. A verdade de cada usuário é construída através de suas pesquisas e preferências, e anúncios e propagandas políticas são recomendadas para estes usuários sem verificação dos fatos ou da qualidade do conteúdo. O mesmo acontece no Brasil, onde pessoas sem qualificação ou compreensão acadêmica da realidade se tornaram referências políticas, por dizerem a “verdade”, sendo promovidas por redes como Youtube e Facebook.
A influência é o ponto macro, enquanto o ponto micro é a mudança na personalidade individual de cada um que utiliza as redes. Uma geração inteira sofreu por conta disso e agora apresenta problemas psicológicos, ilustrados no documentário com o aumento da depressão e o problema de auto-estima causado pelas redes. Sem falar no tipo de controle que é exercido sobre essas pessoas — que partem de uma inteligência artificial complexa, que trabalha sozinha e se aperfeiçoa com base em cada pequena atividade de seus usuários.
Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han a influência da Big Data nas nossas vidas foi o começo da psicopolítica, onde o sistema político se aproveita da vigilância e das previsões digitais, a fim de influenciar o futuro de um país.
“O panóptico digital não é uma sociedade disciplinar biopolítica, mas sim uma sociedade da transparência psicopolítica. E no lugar do poder, entra o psicopoder. A psicopolítca está em posição para, com ajuda da vigilância digital, ler e controlar pensamentos.” HAN, Byung-Chul
Por fim, apesar da qualidade da produção, as declarações relevantes e as explicações, vemos uma certa leveza na forma como O Dilema das Redes finaliza. Não parece que os responsáveis estão assustados com as quedas da democracia e as personalidades de uma geração que foram alteradas para um comportamento consumista virtual. Parece apenas que eles estão dispostos à procurar uma solução para o problema e pronto. Nessa distopia onde uma inteligência artificial autônoma registra cada passo que damos no meio virtual, O Dilema das Redes é o documentário necessário para adquirir uma noção de como usar e não usar este meio.