“Jogo é de quem faz” | Desenvolvedores de jogos protestam contra Game Jam
Desenvolver jogos cada vez mais tem se tornado um plano de carreira palpável para muitos brasileiros, com um mercado em constante crescimento e cada vez mais escolas e universidades trazendo o conhecimento necessário para tal. Porém nem tudo são flores numa indústria onde casos de cargas horárias abusivas – o famoso “crunch” – e outras práticas insalubres que beiram os limites da ética vêm gerando uma insatisfação crescente entre os profissionais da área, jornalistas e fãs que se importam com a saúde e bem estar dos criadores de seus games favoritos.
Esse foi o caso da campanha #JogoEhDeQuemFaz, que levantou questionamentos sobre práticas consideradas predatórias sendo apresentadas em forma de prêmio numa competição de desenvolvimento de jogos.
Por envolver diversas vertentes criativas e tecnológicas diferentes, a ideia da criação de um jogo pode tomar diversas formas: há aqueles que começam criando uma história, os que fazem personagens e desenham os mundos que eles habitarão, ou até aqueles que partem de protótipos de mecânicas de jogo, buscando formas divertidas de se interagir com o computador.
E como uma forma de fazer essas ideias ferverem, diversos desenvolvedores ao redor do mundo se reúnem – física ou virtualmente – em eventos focados em criar jogos dentro de prazos curtíssimos, às vezes até disputando prêmios: as famosas “Game Jams”.
Game Jams: Quem são? Onde habitam?
As Game Jams possuem suas origens e referências nas Jam Sessions – onde músicos se reúnem para criar/improvisar os mais diversos sons – e nas Hackathons – maratonas onde programadores, designers e profissionais de desenvolvimento de software se reúnem para criarem programas também sob prazos curtos. Seus primeiros registros datam de 2002 nos Estados Unidos. Já no Brasil, a primeira Game Jam registrada aconteceu em 2005, e veio se popularizando cada vez mais desde então.
Um dos exemplos nacionais mais proeminentes é a Brasil Game Jam, que ocorre durante a Brasil Game Show, onde as equipes têm até 48 horas para desenvolver um game baseado num tema escolhido pelos organizadores do evento. A Brasil Game Jam já teve apoio da Globo e do Banco do Brasil que, em 2019, ofereceu aos campeões o prêmio de R$6000 e um estágio no estúdio Skullfish Games. Esse ano o evento ocorreu de forma digital, devido à pandemia do Covid-19.
Mas nem só de prêmios vivem as Game Jams! Diversos participantes as usam para aprenderem a trabalhar com prazos e sob pressão, e para terem suas criações no currículo ou portfólio. Diversas empresas de desenvolvimento de jogos, inclusive, perguntam aos candidatos em entrevistas de emprego se estes já participaram de Game Jams. Outro propósito é conhecer pessoas do ramo, como é o caso da Women Game Jam, voltada para o público feminino, trans e não-binário.
É claro que 48 ou 72 horas não é tempo suficiente para criar um grande game, mas diversas equipes gostam tanto da ideia que desenvolveram, que resolvem seguir em frente com ela a fim de comercializá-la. Diversos casos de sucesso já surgiram de Game Jams, como SuperHot, Goat e Surgeon Simulator, e até mesmo Celeste, que foi indicado ao prêmio de Jogo do Ano no The Game Awards 2018.
Tudo isso nos leva ao caso em questão: a SP Pro Game Jam.
SP Pro Game Jam
Organizada pelo estúdio responsável por jogos como Cobra Kai: The Karate Kid Saga Continues, e Get Over Here, a Flux Games, e com financiamento do Governo de São Paulo através do Programa de Ação Cultural (ProAC), a Jam tem como foco os estudantes e profissionais que estão dando seus primeiros passos na indústria, prometendo prêmios em dinheiro, mentoria durante o período de desenvolvimento, e, aos vencedores, um “bootcamp” de seis meses dentro do próprio estúdio da Flux, onde eles continuarão a trabalhar no game a fim de levá-lo ao Nintendo Switch.
Contudo, diversos detalhes nas entrelinhas causaram revolta entre profissionais da área nas redes sociais, que viralizaram a hashtag #JogoEhDeQuemFaz.
Como a tag indica, a polêmica se dá em grande parte sobre a autoria dos jogos desenvolvidos – as Propriedades Intelectuais. Inicialmente, a proposta da Jam era que o jogo vencedor teria seus direitos transferidos integralmente para a Flux Games, deixando o time que o desenvolveu sem direito aos royalties e lucros provenientes dele. Além disso, ao considerarmos que o prêmio é um bootcamp de seis meses onde o time – composto por quatro membros – trabalhará (sem vínculo empregatício) para finalizar o jogo para a Flux recebendo o valor-prêmio de R$30.000, cada membro estaria recebendo o valor de R$1250 por mês para desenvolver um jogo pelo qual não receberiam lucros ou créditos pela idealização, ou sequer poderiam usar em seus portfólios sem a devida autorização da Flux.
Os prazos contraditórios também foram alvo de críticas: a Jam teria uma duração mais longa do que o normal, acontecendo durante todo o mês de Fevereiro, enquanto o bootcamp para a finalização total do game, que é voltado para iniciantes da indústria, teria apenas seis meses de duração – um prazo relativamente curto para quem não possui experiência. Logo, os candidatos teriam um mês inteiro de trabalho intenso num projeto de jogo em troca de uma possível vitória, e caso fossem escolhidos, teriam mais seis meses pela frente para criar um jogo completo.
Tudo isso se tornou ainda mais dúbio em meio aos profissionais de desenvolvimento de jogos nas redes sociais quando o aspecto do financiamento dado pelo Governo do Estado de São Paulo foi levado em conta: A SP Pro Game Jam foi contemplada pelo edital ProAC nº 15/2019 de Incentivo ao Desenvolvimento da Economia com um valor de R$99.900,00. Como apenas R$38.000,00 foram destinados às premiações, e considerando o fato de que a Jam se dará de forma totalmente digital e à distância, sendo a infraestrutura de total responsabilidade dos participantes, levantou-se o questionamento sobre a transparência da empresa quanto ao que seria dos R$62.000,00 remanescentes do valor contemplado.
9.8. A Realizadora não será responsável por problemas, falhas no funcionamento técnico de qualquer tipo, em redes de computadores, servidores ou provedores, equipamentos de computadores, hardware ou software, ou erro, interrupção, defeito, atraso ou falha em operações ou transmissões para o correto processamento das participações, em razão de problemas técnicos, congestionamento na internet ou nas redes sociais ligadas a SP Pro Game Jam.
Curiosamente, essa não é a primeira polêmica na qual a Flux Games se envolveu. Em 2017 o estúdio acabou sendo expulso da Brasil Game Show após trocar de estande sem aviso prévio por estarem insatisfeitos com o espaço ruim quando divulgavam o game GUTS – que por si só já também se envolveu em outras polêmicas e chegou a ser rejeitado por mais de 50 publishers.
As medidas tomadas
Após a pressão do público nas redes sociais, a empresa realizadora atualizou o website e o regulamento da competição.
A mudança, contudo, não foi suficiente para os críticos do evento. Receber como royalties apenas 50% dos lucros e só após a Flux recuperar seus investimentos (com o risco do jogo fracassar e nunca recuperá-lo), por mais que os criadores ainda mantenham os direitos sobre a propriedade intelectual, ainda pareceu insuficiente e pouco claro.
Pra contexto, vender 100k num cenário atual com um jogo está longe de ser fácil e provável, então sempre vale levar em consideração isso antes de aceitar contratos com recoup de 100% porque é bem possível que você jamais veja sequer um centavo das vendas do seu jogo.
— Vítor Malcher 🏠 Social Distancing (@VHMalcherF) December 10, 2020
Vitor Malcher, Game Designer e Community Manager na Behold Studios
Para alguns, nem mesmo as promessas de mentoria para principiantes da indústria, que ocorrerão tanto semanalmente durante a Jam quanto durante o bootcamp, são proveitosas ou justas o suficiente para compensar todo o trabalho exigido.
Falando com propriedade
Nós conversamos sobre o tema com o professor e coordenador do curso de Tecnologia em Jogos Digitais da PUCPR, Bruno Campagnolo, que é também coordenador da Global Game Jam em Curitiba, a maior sede do evento no Brasil e uma das maiores do mundo, com mais de 600 participantes em sua edição de 2020.
Bruno é graduado em Engenharia de Computação pela PUCPR, fez especialização em Jogos de Computador (UP) e é mestre em Informática (PUCPR). É professor e coordenador do Curso de Tecnologia em Jogos Digitais da PUCPR, atuando principalmente nos temas de Inteligência Artificial, Sistemas Especialistas, Inteligência Artificial para Games, Desenvolvimento de Jogos e História dos Jogos.
Torre: Gostaria que você comentasse um pouco sobre essa questão de qualidade de vida no trabalho dos GameDevs, programadores, artistas… A gente escuta bastante casos de crunch, burnout e outros na indústria. Como lidar com essas questões já tão enraizadas culturalmente, e quais cuidados vocês tomam quando executam a Global Game Jam aí em Curitiba?
Bruno: Vamos lá. Em primeiro lugar, crunch, burnout e empresas explorando os trabalhadores são fatos reais, mensuráveis, que não existem apenas na nossa indústria, mas são muito comuns nela. Não só sendo vistos de maneira negativa (como devem ser), mas também, muitas vezes sendo vistos como diferencial positivo de um profissional ou equipe.
Na prática: é um problema real da indústria de jogos e NÃO é incomum ver pessoas se orgulhando de ter trabalhado demais e alcançado resultados (ou não alcançando).
Game Jams NÃO podem ser vistas como uma extensão da indústria nos seus aspectos ruins. Ao contrário, game jams são ambientes / eventos que devem estimular a colaboração, inovação e experimentação e NUNCA o burnout. A restrição do tempo não é uma afirmação para as pessoas ficarem 48 horas direto trabalhando. Ao contrário, tinha que ser visto como uma licença para você passar 2 dias diferentes, em um clima mais de experimentação mesmo. Curtindo a jornada, o processo, mais que o produto em si.
Aqui em Curitiba a gente toma diversos cuidados:
1) Dar um ambiente CONFORTÁVEL. Às vezes mais confortável do que quando você está trabalhando no dia a dia. Coisas simples como massagem, alimentação fácil, facilidade para banho, ambiente legal pra dormir, desestimular condutas de bullying, etc.
2) NUNCA trabalhar com desafios que estimulem ficar sem dormir, sem comer, etc. Desafios sempre tem que ter um viés criativo.
3) Ter mecânicas para fazer com que as pessoas definam direitinho o que cada um da equipe quer do jogo. Alguns levam a sério DEMAIS, então tem que deixar pessoas que tenham esse viés com uma mensagem clara de MANERAR.
4) Definição clara de propriedade: O jogo nunca deve ser da Game Jam. É da equipe que desenvolveu e ela sabe o que faz. Estimular o cuidado, inclusive, com créditos para mentores, músicos externos, etc.
5) Uma que é beeeeem simples, mas dá uma cara bem animada pra jam. Estimular que jammers participem de mais de uma equipe. Essa troca é essencial pra dar o aspecto de jam, colaboração e menos de hackathon, competição.
Torre: A gente sabe que desenvolver jogos é muito um trabalho de paixão, o sonho de infância de muita gente. Você acha que isso acaba sendo usado de forma predatória ou abusiva, no sentido de negociar a realização desse sonho em troca de salários baixos, perda de direitos…?
Bruno: Eu acho assim: Jogos são cultura, ferramenta de expressão, software, etc. Então CLARO, envolvem paixão. Só que, antes de qualquer coisa: são um trabalho.
Por isso tem que se tomar cuidado pra valorizar o trabalho de TODOS que estão envolvidos na cadeia produtiva e com a valorização devida pelo trabalho feito. Concursos (de qualquer nível), tem que sempre levar em conta isso.
Lembrando que mentoria / marketing / publicação também é trabalho e também tem muito valor. Por isso, importante e essencial valorizar também. A dosimetria disso é que é o grande desafio, mas tenho certeza que o desenvolvedor deveria sempre ser o mais valorizado.
Torre: Quais conselhos você deixaria pra quem está começando ou busca iniciar uma carreira como GameDev – onde conseguir experiência, quais cuidados tomar…
Bruno: Eu sou muito fã do desenvolvedor iniciante participar de projetos, game jams, concursos, etc. Game jams são boas pois são mais experimentais, permitem uma responsabilidade menor. E tem muita gente pra se ajudar.
Sobre cuidados: pessoas tem expectativas diferentes. Alinhe expectativas desde o começo e trabalhe com pessoas que tem expectativas similares às suas.
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A Torre de Controle procurou a Flux Games mas não obteve resposta até o momento dessa publicação. Contudo, em resposta ao UOL, o estúdio afirmou que tudo o que tem a declarar já está no comunicado publicado em suas redes sociais, e que “cerca de 90% das vagas para a SP Pro Game Jam já foram preenchidas, totalizando 80 inscrições realizadas”.