Crítica | Nomadland – a natureza trágica do capitalismo
Retratando o drama de uma vida transitória, Nomadland é um dos indicados ao Oscar de 2021, e relata a história da personagem Fern, interpretada por Frances McDormand. Dirigido e roteirizado pela chinesa Chloé Zhao, o longa aborda a vida de uma mulher que perdeu tudo na Grande Recessão de 2008 e teve de se adaptar à um novo estilo de vida, vivendo em diferentes lugares do Estados Unidos dentro do seu carro. Essa nova condição de vida propaga reflexões sobre o quanto estamos presos à uma existência materialista, sem seguridade social, e como a ausência de um local ao qual pertencemos pode nos forçar à rebuscar o sentido da vida.
A história foge do previsível, se debruçando na busca do sentido de Fern através de horizontes e espaços vazios, procurando uma paz interior quase impossível dentro de um sistema econômico destinado à recorrentes crises. Isso fica subentendido ao descobrimos que Fern trabalha temporariamente na Amazon, numa fábrica com tarefas automatizadas, que não dão espaço para seu valor de vida. A alienação constante em trabalhos árduos impedem que a protagonista encontre o motor que a move, servindo apenas para sua sobrevivência. E é ao perder tudo que Fern se depara com a vida nômade como o processo dessa grande busca, se interessando pelo nomadismo e acompanhando relatos de nômades — pessoas que interpretam a si mesmas no filme.
Esses não-atores agregam relatos comoventes na trama, e revelam perdas, falta de estabilidade, dívidas e carência de apoio por parte do governo estadunidense. Mas também revelam o espírito comunitário que surgiu a partir disso, e a necessidade de se reinventar no “país mais livre do mundo”, relatando uma realidade dura e cruel. Muito dessas constatações são inspiradas pelo livro “Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century”, escrito pela jornalista Jessica Bruder, que conta com a participação de Bob Wells e Linda May – presentes no filme. Além do conhecimento próprio da diretora, que possui formação não apenas em cinema, mas também na área de ciência política.
As falas do roteiro de Fern buscam uma expressão da sua personalidade supressa, que é exposta muito mais no silêncio, ambientado num deserto que antecede montanhas em seu além. Essas paisagens falam mais que a própria personagem, principalmente nos takes grandiosos e na fotografia, que é o grande encanto desse filme. Nesse cenário, a personagem se desvincula do individualismo competitivo e se volta para a natureza e para a comunidade. É a consistência material da natureza que a acolhe – não dos produtos que provém da exploração desta. E nesta situação Fern passa a sofrer preconceitos, por viver transitando de lugar à lugar, fazendo com que terceiros não compreendam seu rumo, a tratando como uma pessoa a margem da sociedade.
Alguns elementos da narrativa refletem a visão da diretora Chloé Zhao sobre o ocidente, revelando um olhar externo que possibilita a crítica do sistema com mais clareza. Embora sejam evidentes a desigualdade econômica e marginalização em países neoliberalistas, não são todos que confrontam criticamente um sistema econômico no qual estão inseridos. E nesse sentido Nomadland faz um trabalho sensível e preciso. Sua estrutura espaçada, com perspectivas humanistas e visuais de cores realçadas, compõe um contar de história livre, que esconde um grande sofrimento da protagonista — a razão do seu vagar.
Por fim, Nomadland é um filme aberto, quase antropológico, e que levanta diversas questões sobre incertezas, estilos de vida, solidão e desprendimento material. As atuações são comoventes e informativas em certo nível. As ambientações buscam grandes espaços, que simbolizam bem a jornada de Fenn. O ponto alto do filme certamente é a fotografia, que maneja o filtro acinzentado dos cenários de forma magnifica, acrescentando tons que só são possíveis através do cinema.