Análise | Demon Souls Remake: A pedra fundamental dos jogos difíceis que tanto amamos (ou odiamos!)
Para começo de conversa e para apressados, preciso dizer logo de cara que Demon Souls Remake brilha muito (pure white, hein?) no novo console da Sony, o Playstation 5. É sobre tal fundamento que escrevo esse texto, tanto como um review pessoal desse clássico moderno, quanto também me proponho a explorar uma filosofia dos jogos do icônico desenvolvedor e diretor Hidetaka Miyazaki. Ao todo foram mais de 90 horas de gameplay perseguindo a platina, explorando cada pedacinho dos mapas e deliciando tudo de novo que trouxeram para a nova geração.
A história por detrás de Demon Souls Remake
Demon Souls foi originalmente lançado em 5 de fevereiro de 2009, produzido pela Fromsoftware e dirigido por Miyazaki, como um exclusivo de PS3. O jogo possui um background um tanto curioso, contado numa entrevista com o icônico diretor, em que é dito que o presidente da Sony Worldwide Studios na época, Shuhei Yoshida, disse ter se arrependido de não ter acreditado tanto no jogo.
O game só foi lançado no Ocidente após 9 meses de seu lançamento no Japão. Miyazaki acredita que da perspectiva atual, foi até bom que o lançamento não tivesse ocorrido de modo simultâneo, pois a sua repercussão poderia não ser sido aquela construída a partir de uma comunidade. O fato é que Demon Souls vendeu mais de 40.000 cópias em sua primeira semana no Japão e ajudou a alavancar as vendas do PS3 por lá. Até o final daquele ano de 2009, o jogo já tinha vendido 134.585 cópias no Japão, sendo bem avaliado pela crítica oriental.
O jogo chegou ao Ocidente com o status de inovador e pioneiro, estreando em outubro de 2009 já perto dos dez jogos mais vendidos, ocupando a décima primeira posição na América do Norte, com 150.000 cópias vendidas. Em dezembro daquele ano já havia vendido meio milhão de cópias e alcançado um novo patamar na crítica ocidental, tendo as notas de 90 no Metacritic e GameRakings. Ainda é preciso ressaltar que o jogo recebeu diversos prêmios referentes ao ano de 2009, tal como o Jogo do Ano Geral pela GameSpot. Enfim, Demon Souls já era uma realidade na indústria dos videogames.
Finalmente em outubro de 2020, junto com a nova geração de consoles, veio o tão aguardado Remake de Demon Souls produzido pela Bluepoint e exclusivo para o Playstation 5. A comunidade mais uma vez celebrou e com motivos de sobra.
Gameplay, narrativa, trilha sonora: o pacote completo
Demon Souls Remake é impecável naquilo que se propõe tecnicamente e narrativamente: é visualmente lindo e fluido, é satisfatório em sua jogabilidade, transmite ao jogador um universo que responde por si só e possui uma trilha e efeitos sonoros de arrepiar (inclusive fica a dica de procurar a soundtrack original nos agregadores de música). O game dá ao jogador a opção de escolher entre dois modos gráficos: o modo cinemático, o qual prioriza o 4K nativo e o trava em 30 quadros por segundo; e o modo performance, que por sua vez prioriza a fluidez do jogo em 60fps e alcança o 4k dinâmico via upscaling. Eu particularmente recomendo o modo performance para uma maior precisão e também porque não deixa a desejar em nada no quesito gráfico.
Ah, os gráficos de DS Remake, que deleite! Talvez seja até a data dessa crítica o jogo mais bonito, elegante e garboso da recém chegada geração de consoles. Os trailers que antecipavam o lançamento já prometiam um mundo cheio de detalhes e efeitos visuais de cair o queixo, e foi exatamente isso que a Bluepoint entregou. Eles já haviam feito algo semelhante com o remake de Shadow of Colossus para PS4, mas aqui tiraram muito mais vantagem do poderoso hardware do PS5. Já no começo do jogo você toma aquele e ar e diz: “uou, isso realmente tem cara de next gen”. E eu não estou falando apenas das cutscenes repaginadas e épicas, mas sim da gameplay rolando enquanto um enorme dragão aparece cuspindo fogo e incendiando uma ponte. Houve momentos durante a minha jornada que apenas pausei a frenesi do jogo e fiquei parado admirando o cenário ou mesmo os Dragões de Boletaria. Se você curte tirar fotos, o jogo possui um modo foto em que fica ainda mais perceptível o esmero que tiveram ao entregar um jogo tão polido.
A jogabilidade de Demon Souls é espetacular e conta com a mecânica que sagrou a série souls – e depois Bloodborne – por sua recompensa na habilidade do jogador. O personagem pode atacar (com armas e/ou magia), esquivar, defender, usar itens de cura e contra golpear com os famosos backstap e pairing que consistem em achar o momento perfeito para dar um hit no adversário. Precisão é tudo nesse jogo e isso obviamente afasta muitos jogadores casuais, porém tudo tem um propósito e daqui a pouco falaremos mais a respeito disto. Outra coisa importante a se destacar é que o novo controle da Sony, o DualSense, casa perfeitamente com a imersão que o jogo propõe. O recurso de feedback háptico permite que o jogador sinta a sensação de estar de fato carregando e golpeando com um escudo e uma espada, além claro da precisão e pegada que faz com que o game seja confortável para longas sessões de jogatina.
O universo, a trama e todo o lado subjetivo deste RPG que é Demon Souls fazem dele um jogo para se apreciar. Sim, nada é tão de graça ao ponto de que o jogador não precise preencher as lacunas imaginativas e expandir através de seu personagem montado em diferentes classes e builds, a história de um mundo em que você é um herói (ou anti-herói?) em progressão. E não se trata de um mero generalismo que permeou vários jogos posteriores, mas sim de entender que é a sua história – ou melhor, a de seu personagem – que torna tudo relevante. É um mundo fantasioso que entrega não só o combate contra bosses dificílimos, mas a própria ideia de redenção para uma humanidade caída e perdida a partir daquilo que você escolhe ser (mago, sacerdote, guerreiro, soldado, etc.). Você encontrará npc’s dispostos a ajudar ou dificultar a missão e caberá sempre a você quais decisões tomar, mesmo que isso não apareça numa caixa de diálogos e sim na intuição de lutar ou não contra eles. Mas novamente, deixarei para detalhar o mundo narrativo de Demon Souls logo a seguir.
Por fim neste bloco, gostaria de ressaltar aquilo que também torna o jogo extremamente competente em sua imersão: a trilha e os efeitos sonoros. Se você é daqueles jogadores que se aclimatizam a partir de uma boa resposta auditiva que o game pode oferecer, Demon Souls será, sem dúvidas, um prato cheio. A Sony veio para a nova geração com a carta na manga de ser o áudio um grande trunfo em seus jogos exclusivos. Promessas a parte e coisas que só o tempo poderá dizer, Demon Souls é uma experiência auditiva, seja pela tensão criada quando as cutscenes de abertura tocam, ou então pelas músicas épicas que embalam as batalhas contra os chefões – e em especial destaco a batalha contra o Storm King, numa junção de música épica estilo God of War mais Shadow of The Colossus; e de efeitos sonoros que te colocam praticamente no meio de uma tempestade de raios.
Afinal, que mundo é este de Demon Souls?
Para veteranos do mundo SoulsBorne, o que eu comecei a esboçar sobre a narrativa de Demon Souls pode parecer um “chover no molhado”. Mas o meu intuito aqui não é simplesmente atingir a parcela daqueles que já sabem o que esperar quando pegam um jogo da Fromsoftware, todavia almejo que novatos e aqueles que um dia disseram “nunca mais irei tocar num jogo de Miyazaki” possam se apaixonar pelas masterpiecies que o estúdio produz.
Vamos lá! Demon Souls é um RPG de ação com o foco no aumento da habilidade do player e na otimização do personagem. Diferente de boa parte dos RPG’s Ocidentais focados numa árvore de habilidades, em Demon Souls você otimiza o seu personagem à medida que coleta souls de seus inimigos e os agrupa numa forma que melhor casa com a build que você está construindo. O jogo muda de acordo com a forma que você joga em termos de dificuldade dos inimigos e itens que podem ser adquiridos. Existe uma mecânica a princípio um pouco complexa sobre Tendência do Mundo e Tendência do Personagem que varia no espectro de Pure Black (que torna os mundos mais difíceis, porém mais recompensadores) e Pure White (que torna os inimigos mais brandos, e também necessário para cumprir determinadas quests do jogo).
A história do jogo, como eu disse anteriormente, tem os elementos subjetivos de construção do personagem fixadas no enredo que mostra um Rei que se corrompeu em busca de poder e prosperidade (Rei Allant XII) canalizando o poder das almas e trazendo ao Reino de Boletaria os benefícios de seu governo, até que um nevoeiro espesso cobriu as terras próximas, cortando a conexão do reino com o mundo exterior. Aqueles que entravam no nevoeiro nunca retornaram, e você é apresentado à história logo no começo do jogo com a missão de quebrar a maldição que circunda o Reino de Boletaria. Logo então você morre e acaba parando no Nexus, que é o ambiente seguro (ou nem tanto) do jogo e também local em que você pode viajar para cinco mundos distintos com o objetivo de derrotar os demônios-chefes que por lá habitam. Sim, a história tem riquezas e meandros das quais eu não posso me aprofundar tanto para que a sua experiência não seja enviesada ou mesmo estragada.
A filosofia de Hidetaka Miyazaki
Bom, já deu para notar até aqui que os jogos do diretor Miyazaki são difíceis, únicos, icônicos e legaram toda uma comunidade de fãs. Mas qual é o diferencial dos jogos da Fromsoftware para tantos outros que vieram no embalo ou mesmo que bebem diretamente da fonte estabelecida? Óbvio que existe o pioneirismo na maneira de colocar cada elemento do jogo trabalhando em prol da dificuldade do game e de sua progressão. Porém, existem algumas camadas a mais que precisamos tomar nota.
Primeiro é que a intenção do diretor nunca foi a de simplesmente entregar um jogo difícil, e sim de proporcionar uma sensação genuína de conquista no jogador. É tal como se colocar diante de um desafio e não desistir até que esse desafio seja deposto. No final das contas, o próprio Miyazaki diz não ficar chateado quando as pessoas apenas lembram de seus jogos pela questão da dificuldade. A dificuldade é o mecanismo para a filosofia do desafio.
Sim, essa a filosofia que Miyazaki embrulha os seus jogos. À medida que você joga, você se dá conta de que não é tão habilidoso quanto poderia ser, de que as coisas não são tão dadas assim, e é apenas na morte seguida de morte – que simboliza o ato de doar-se repetidamente – que você vê a curva de aprendizado tomando forma e as suas sinapses mentais trabalhando em favor de encontrar novos meios, novas táticas e uma nova postura para ser preciso e letal.
Veja bem: se a virtude socrática passa pela excelência na execução e ação; se na concepção aristotélica as ações devem ser comedidas e progressivas até que você as tenha por completo; e se na visão estoica você deve aceitar a realidade e trabalhar com ela; nós temos na filosofia de Miyazaki uma forma de te expor à natureza das coisas difíceis e nos modos apropriados para continuar sem desistir. Oras, essa é a postura para com a vida real e que Miyazaki deixa subentendido para que você capte: a vida é não é “mamão com açúcar”, então não desista de primeira. Doe-se, mesmo que você se desgaste e se frustre, enfrentando a morte com bravura e coragem.
Deixe-me ser mais claro e honesto: a filosofia do jogo é a mesma da vida no sentido de que para muitos “bosses” e inimigos – leia-se, dificuldades da vida – nós temos que persistir é na marra mesmo, de cara feia e tudo, descobrindo os padrões e os gatilhos que nos fazem “perder”. Claro, a vida não é exatamente um jogo, e é muito mais desbalanceada no quesito de habilidade e tempo. Portanto, seria injusto dizer que nós conseguimos simplesmente vencer ou avançar tal como em Demon Souls. Mas a mensagem de persistência possui um valor intrínseco. Você está aqui, o tempo é o presente, e o desafio vai continuar lá. Por que não aprender e crescer?
Conclusão
Dito tudo isso, só consigo chegar numa conclusão de que talvez nem seja lá tão polêmica: Demon Souls Remake é um dos grandes injustiçados de 2020. O game sequer figurou no The Game Awards mesmo que o seu embargo e reviews tenham sido anteriores à data de corte da premiação. Sim, o fato de ser um jogo de estreia de nova geração e bem próximo ao fim do ano com certeza não ajudaram a impactar tanto assim o apelo público e uma larga distribuição nas mãos dos jogadores. Entretanto, enquanto crítica especializada, considero um equívoco que o jogo não tenha sido um dos indicados em qualquer uma das categorias que concorresse. Tenho para mim, que Demon Souls deveria ter concorrido à jogo do ano ainda que haja um debate caloroso na comunidade sobre a validade e perpetuidade de jogos remake (Resident Evil 2 Remake era remake o suficiente para ter concorrido? Qual o critério maior? Pense aí, caro leitor!).
Polêmicas à parte, Demon Souls tem todo o mérito de ser se tornado a pedra angular ou fundamental dos jogos que consagraram o gênero e a própria Fromsoftware (que em 2019 levou com Sekiro, justamente, a premiação de jogo do ano), mas o trabalho que a Bluepoint fez ao entregar o Remake precisa ser celebrado como a edição definitiva e eternizada (por que não?) do jogo mais influente da última década. Enfim, jogue, frustre-se, larga de mão, pegue de novo, vá fundo e delicie com essa obra de arte que te ensina como a vida é dura, mas também recompensadora!