Crítica | All About Lily Chou-Chou – o éter na escuridão
Do diretor Shunji Iwai, o longa All About Lily Chou-Chou (2001) – ou Tudo Sobre Lily Chou-Chou – foi lançado em 2001 e abordou de forma visceral diversos dilemas da sociedade japonesa na virada do século XXI. Yūichi é um estudante tímido, obcecado pelas músicas de uma artista chamada Lily Chou-Chou – um fenômeno musical. Consumindo toda a discografia dela e debatendo continuamente em fóruns, o jovem encontra nisso seu refúgio de uma realidade violenta e incerta, tentando desvendar o segredo por trás das músicas etéreas da cantora. Além disso, o garoto de 14 anos tem uma amizade contraditória com alguns de seus colegas de classe – seus únicos amigos – e enfrenta uma vida social conturbada, para não dizer traumática. Humilhações públicas, violência explícita e transformações inusitadas marcam esse filme, que se desenrola em três linhas temporais condensadas em 157 minutos.
A música como fuga da realidade
Antes de falar da estrutura do filme, é importante destacar o significado de Lily Chou-Chou, considerando que a trilha sonora contém faixas da artista fictícia (as composições são de Takeshi Kobayashi e os vocais de Salyu), proporcionando uma pista sensorial do som que influencia tanto os personagens quanto a narrativa. Inicialmente, o som de Lily Chou-Chou vai além do pop, apresentando um caráter alternativo, experimental e atmosférico. O ritmo é lento e os arranjos fazem uso adequado de reverb, criando camadas sonoras que transmitem uma sensação de “flutuação”. Podemos compará-lo a um gênero de garage rock com elementos de dreampop. São sons densos e melancólicos, que se propagam de forma distante. Essa sensação de flutuação encanta os personagens do filme – é como um mantra contemporâneo.
Aqueles que já foram fãs fervorosos de uma banda durante a juventude sabem como o culto ao artista é parte recorrente do significado que a música possui nessa fase. É uma questão de identidade, de se ver refletido na arte de alguém e desejar conhecer mais a fundo o criador. Basicamente, esse é o objetivo dos adolescentes no filme. Essa camada sonora densa é como um véu que cobre a figura de Lily Chou-Chou, e, uma vez desvelada, a música revela mais sobre a vida dos personagens do que sobre a própria artista. Isso está relacionado à questão do éter, que caracteriza o estilo das trilhas sonoras.
A hipótese do Éter provém de Aristóteles, que pensava existir uma substância invisível que preenchia o espaço, uma quintessência chamada éter, a qual permitiria uma locomoção perfeita dos astros. Posteriormente, foi desenvolvida a hipótese de que o éter seria o meio pelo qual a luz se propagaria no vácuo. No filme, essa ideia serve como analogia para os discos e como eles influenciam os personagens. O som e as letras são aqueles que propagam alguma luz na vida dos adolescentes em geral, que se veem perdidos nessa escuridão social e psicológica.
A violência em All About Lily Chou-Chou remete a Edward Yang
Falando sobre esse espectro sombrio da fase adolescente, a história do filme gira em torno da amizade entre Yūichi Hasumi (Hayato Ichihara) e Shūsuke Hoshino (Shugo Oshinari), dois colegas que cultivam uma boa relação apesar das diferenças. No entanto, depois de uma brusca mudança, ambos se esquecem um do outro, permanecendo num vínculo abusivo e criminoso. Essas mudanças surgem a partir das diferentes formas que o filme organiza as linhas do tempo, nos jogando de uma parte a outra da história moldando uma perspectiva fílmica sonolenta, como se as imagens acordassem entre um sono e outro. Tudo é acarretado num ar nostálgico e até misterioso – onde o filme quer chegar? Bom, a obra quer chegar nos pesadelos dos quais os personagens tentam sair: a realidade. E é chocante, e até perturbador, assistir as situações que se desenrolam, visto que são jovens presos numa vida injusta, perfeitamente cabível à nossa realidade. Tudo tomado como ciclo de uma violência internalizada, causada por puro bullying, que se desenvolve numa geração sem perspectiva, perdida no escuro, em busca de éter.
É curioso pensar como essa abordagem da violência na juventude é amplamente discutida na literatura e no cinema japonês dessa época, como nos filmes de Hideaki Anno, criador de Neon Genesis Evangelion (1995) e diretor de Love & Pop (1999), um longa baseado no livro Topaz II (1996) do escritor pós-modernista Ryu Murakami. Inclusive, Anno colaborou em filmes com Shunji Iwai, como Rituals (2000). Temas como o isolamento (hikikomoris), bullying, suicídio e prostituição infantil (enjo kōsai) ganharam espaço de debate nesse círculo cultural. São problemas que o Japão diagnosticava no início do século, contextualizados dentro do avanço tecnológico.
A influência de Anno não está apenas na abordagem temática, mas também nas câmeras com perspectivas de objetos e nas caixas de texto dos fóruns online, onde letra por letra são digitadas como lapsos do pensamento. Claro, a assinatura de Shunji Iwai é precisa, principalmente na temporalidade confusa e nas luzes altas, que ofuscam como névoa. A câmera digital viaja de forma não estática pela zona rural do Japão, pelas ruas estreitas das cidades e até pelas lindas praias de Okinawa. A confusão propositalmente toma conta das imagens que vemos e molda uma estética mais independente ao tentar representar o ritmo urbano, agitado e ao mesmo tempo solitário.
No mais, All About Lily Chou-Chou (2001) surge como uma internet novel de Shunji Iwai, mas renasce como um filme coming-of-age, que instiga raiva e sentimentos complexos. Enquanto vemos Yūichi Hasumi tendo sua jovem pureza sendo maculada, também acompanhamos o desenvolvimento de Shūsuke Hoshino, que se transforma em um personagem cruel, desprezível e controverso. Junto a personagens secundários que testemunham e engolem de forma seca momentos difíceis da narrativa e são até penalizados, como a jovem Yōko Kuno (Ayumi Ito) – uma pianista promissora.
Apesar de toda a crueza, é inegável a abordagem artística na qual o filme se desenrola, dentro da criatividade amarga – mas necessária – de Shunji Iwai. Essa complexidade nos instiga a buscar respostas em outras camadas, como na representação da virtualidade na internet e nas músicas de Lily Chou-Chou, onde o estado psicológico dos personagens nos é entregue nas entrelinhas, mas também na sonoridade subjetiva que nos leva além da interpretação – no simbólico éter. No fim, o sentido que se ausenta nessa difícil realidade precisa ser buscado no elemento que dá nome ao filme: em Lily Chou-Chou.