Crítica | Memoria
Dirigido e escrito por Apichatpong Weerasethakul, Memoria (2021) foi lançado em outubro de 2021 e é o primeiro filme do cineasta tailandês a se passar em outro país, neste caso, na Colômbia. Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2021, pode-se dizer que é o filme mais internacional do diretor, estrelado pela atriz inglesa Tilda Swinton, conhecida por suas colaborações com Wes Anderson. O título não estreou nos cinemas brasileiros, e só pude assistir graças à Cinemateca Capitólio de Porto Alegre (RS), que disponibilizou uma sessão exclusiva.
Na história, a escocesa Jessica Holland (Tilda Swinton) acorda ao ouvir um estrondo, um barulho alto e característico que se repete continuamente durante o filme, mas sem apresentar evidências materiais de onde vem. Além disso, a irmã da personagem está internada no hospital em Bogotá, e Jessica, no intervalo entre suas visitas, mantém uma amizade com uma arqueóloga. São essas pequenas situações que vão costurando o filme, desvirtuando sua narrativa ao mesmo tempo que aprofunda seu tema central: a memória.
Por trás dos enganos da mente
Em síntese, o filme é uma profunda meditação sobre a memória, em que reflexões sobre o assunto surgem e desaparecem no fluxo da consciência atordoada de Jessica. É justamente na diferença entre “o que acontece” e “o que é lembrado” que reside toda a estrutura de Memoria. Esse aspecto é impulsionado pelo estrondo que abre o filme, um som marcante, mas não identificável materialmente; e é justamente na investigação desse som que a produção sonora do filme se desenvolve de forma genial, apresentando perspectivas que ressaltam a percepção sensorial.
O esforço desta produção é nos afastar gradualmente de uma interpretação fisicalista dos fenômenos da memória, o que abre espaço para uma característica clássica do trabalho de Apichatpong: o teor místico. Neste caso, o diretor não parece interessado em retratar elementos metafísicos, considerando que a beleza das paisagens e cenários urbanos da Colômbia nos coloca em contato direto com a realidade. No entanto, é a demora das câmeras nessas paisagens que cria uma atmosfera espiritualizada, quase hipnótica, dentro da trama.
Todo o percurso do roteiro, em cenas lentas e estáticas em um nível Tsai Ming-liang, nos distrai para a chegada do inesperado. Isso nos leva a questionamentos que dificultam mais o enigma do que revelam a solução direta. Pois as respostas de Memoria se manifestam no som seco, grave, pesado e reverberante, como uma esfera metálica atingindo uma superfície terrosa – o som descrito pela personagem. E quando isso revela sua natureza, o filme lembra alguns dos momentos intrigantes do diretor chinês Jia Zhangke – sem ser muito explícito.
Memoria explora o som para alcançar o sensível
Todo o percurso indagativo é muito bem planejado e desenvolve uma simpatia pelos personagens, como o engenheiro de som Hernán, que ajuda a reproduzir o barulho que Jessica procura, assim como as discussões arqueológicas que nos colocam em contato memorial com o passado já soterrado. Vale apontar que a excelência sonora não está apenas na mixagem e nos timbres utilizados por Hernán, mas também na própria trilha sonora, que ganha vida através da performance de uma banda de jazz muito cool.
Diferente de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), vencedor da Palma de Ouro, Memoria aborda o “lembrar” como algo menos fantasioso, visivelmente, e revela o caráter enganador das lembranças através de uma personagem que não consegue dormir e está propensa a ter alucinações – em mais uma tentativa de desvirtuar as causas reais. Talvez o filme assuma a própria essência falsificável das memórias, mas ao menos nos propõe boas reflexões.
Na minha visão, Memoria é uma investigação sobre as causas primeiras de algo que se revela sonoramente, mas não empiricamente. No meio desse percurso, é estabelecido um contato forte com o real através da cinematografia, que captura a beleza do ambiente colombiano, mas sem se limitar a isso e sem medo de adentrar nas viagens clássicas de Apichatpong. É o próprio vazio questionador proporcionado pela atuação excepcional de Tilda Swinton que abre espaço para outras possibilidades de respostas, que se dão através de uma linguagem cinematográfica bem articulada.