Crítica: Regra 34 | Política Sexual para leigos #MostraSP

 

Essa crítica faz parte da série de análises da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, festival anual que celebra o cinema mundial, trazendo centenas de filmes, entre clássicos e contemporâneos, todo mês de outubro.  Eu, Matheus Maskalenka, apresento essas críticas como uma seleção do que mais me interessou e talvez interesse a vocês quando os filmes forem lançados em cinema ou streaming

A primeira coisa que vemos em Regra 34 é uma tela do Chaturbate. Passamos uns bons cinco minutos vendo a performance BDSM de Simone (Sol Miranda), que se exibe e explora seu corpo para a alegria dos seus fãs, que lançam elogios e sugestões no chat. Embora o filme apresente uma interface de camsite genérico, o efeito sonoro do recebimento dos tokens é inconfundível e, mais tarde, o site é citado por nome. Esse filme se passa no mundo real. Mais tarde, um fã sugere a autoasfixia, que deixa Sol relutante por ser algo arriscado. Mas a ideia pega e mais fãs começam a pressionar, dando quantias muito grandes de tokens. A pressão se torna muito grande pra Sol e ela desliga a live, aos prantos.

Depois, vemos a vida “civil” de Sol, universitária cursando Defesa Civil, sempre pressionada pelo ambiente acadêmico predominantemente branco, masculino e elitista. As salas de aula são palco de diversos atritos entre Sol e os outros em questões sobre a lei, como ela é aplicada para a manutenção da ordem vigente e sobre as pessoas que são deixadas pra trás pelo sistema, principalmente mulheres pobres e negras. No estágio, ela vê em carne e osso os relatos que são discutidos na teoria, com casos de mulheres que sofrem agressão, violência e sequer tem recursos para se entenderem enquanto vítimas.

Com essa premissa, a diretora e roteirista Julia Marat (Operações de Garantia de Lei e Ordem) prepara o terreno para uma discussão provocadora sobre sexualidade, relações de poder, violência e as complexidades de tentar encontrar a libertação em um sistema que permeia todas as esferas da sua vida. Todas essas temáticas se encontram no BDSM, que se desenvolve no arco de Simone em querer realizar a autoasfixia apesar do medo de cruzar um limite.

Como introdução às diversas questões que aponta, é louvável a maneira que Marat consegue amarrar várias discussões de conceitos grandiosos à vida interna da protagonista. Simone trava uma luta em dois fronts: Tentar fazer valer sua perspectiva enquanto mulher negra ouvida no  lugar comum do ambiente acadêmico e tentar aplicar esses ensinamentos na função de defensora pública nas periferias do Rio.  Tudo isso enquanto lida com os dilemas da sua sexualidade, que é explorada com Coyote (Lucas Andrade) e Lúcia (Lorena Comparato), que formam um trisal, ambos com ideias diferentes sobre o trabalho sexual. Simone é uma mulher que transita entre dois mundos, ambos trazem frustrações que são refletidas na exploração de sua própria sexualidade.

Vale um parêntese para explicar a tal “regra 34”: Se trata de uma gíria dos primórdios da internet, que dita que “Qualquer coisa que existe tem sua versão pornográfica“. Normalmente, isso se manifesta mais no ramo da ilustração erótica, com a Lola Bunny fazendo atos inenarráveis com o Sonic. Nesse caso, a regra é invocada de uma forma menos tradicional: O filme pergunta se a prática de BDSM na pornografia não seja simplesmente mais da mesma violência praticada contra a mulher no cotidiano, só que adaptada para o consumo em massa.

O filme não trata isso de forma leviana. Em vários momentos é mostrado que certas atitudes antiprostituição, como o chavão “devemos amar a prostituta e odiar a prostituição” não passam de um paternalismo com requintes progressistas. Em outros, realça que mesmo na esfera íntima, é impossível desassociar as relações sexuais com as relações de poder.

As mulheres de periferia com quem Simone trabalha abalam qualquer noção de mundo teórica que Simone tem. Vendo relatos de mulheres vítimas de abuso, incluindo uma atuação incrível da MC Carol, Simone se depara com uma realidade complexa, onde a misoginia está tão enraizada a ponto de se questionar até a culpa de um agressor, já que a sociedade moldou ele de forma a não saber lidar com uma mulher que não seja submissa a ele. A sensação de impotência é imensa, e nenhuma solução é aparente.

Aí vem as cenas de sexo. Ao contrastar a violência que Simone se submete em prol de um fetiche à violência para seu próprio prazer com depoimentos de mulheres que a sofrem no cotidiano, fica turva a linha que separa a exploração (edificante) da exploração (pejorativa). Em um assunto tão espinhento como sexualidade, como você saber o ponto em que o empoderamento sexual degringola para a reprodução dos sistemas que nos oprimem? Com a Simone, não é simples. O tato e cuidado que ela tem com as mulheres no trabalho não acontece nas suas explorações de autoasfixia, ela passa do limite várias vezes e parece não ligar muito pra isso, chegando a se machucar e ser banida do Chaturbate, coisa que não aconteceria se ela lesse as regras ou discutisse com outras do mesmo ramo.

Se Coyote, negro, bi e de origem semelhante à de Simone se dispõe a acompanhar ela nas lives; Lúcia, branca e de classe média, fica desconfortável com isso, lembrando que, no fim das contas, quem gerencia as plataformas são os mesmos homens ricos que se beneficiam do sistema vigentes. Se por um lado a sociedade pressiona com restrições, os “aliados” não deixam de cobrar posicionamento no âmbito que deveria ser uma válvula de escape.

A voz da razão vem da Natália, mulher que iniciou Simone no BDSM, interpretada por Isabela Mariotto (Da Websérie A vida de Tina). Na participação dela o filme mostra que a prática sexual é algo a ser levada a sério, discutida e entendida como uma coisa que se aprende, e que sempre há recursos a se buscar para se entender melhor. Efetivamente, o personagem de Natália representa o que o filme quer ser, um espaço seguro para discussões difíceis.

Mas não é bem assim que acontece. Embora o filme de fato traga em evidência várias questões importantes de serem tratadas, ele não é capaz de dar a devida atenção a tudo que se propõe a discutir, e quando não tem relação direta à caracterização da Simone, a sensação é que a discussão se descola da narrativa e vira um didatismo estéril.

As diversas discussões na sala de aula em muitos casos mais parecem threads de Twitter, onde alunos e professores parecem não ser pessoas com opinião, mas sim receptáculos de conceitos e ideias. Diálogos inteiros parecem que são threads de twitter de tão básicos, parecem que foram feitos no limite de 280 caracteres, não coisas que pessoas de fato falariam. A interpretação de Sol Miranda é primorosa, mas nada é capaz de fazer a frase “Me desculpe se o meu tesão não é suficientemente político pra você” soar natural. O que seria mais perdoável se o roteiro se aprofundasse mais nessas discussões, mas a impressão real é que a meta era ser um guia introdutório para os não versados no assunto.

O resultado disso é que, embora o filme reconheça a importância do assunto, e que não há soluções fáceis, ele acaba em uma ambiguidade que não é lá muito estimulante. A questão da Simone com a asfixia não chega em nenhuma conclusão e o filme se contenta em ter havido uma discussão. O filme parece se contentar em ser um efeito Kuleshov: O que você conclui quando vê uma vítima de violência no leito hospitalar e em seguida outra mulher consente em ser enforcada no sexo? A discussão do filme fica a desejar.

Uma cena linda na metade do filme mostra Simone e Natália, desanimadas e não conseguindo botar pra fora o que guardam, começam a se descontrair ao som de Kelly Key – Cachorrinho, e ao fim da música estão rindo juntas. É como se o filme falasse “Não seria tudo mais simples se a vida fosse uma letra da Kelly Key?”.

É um desabafo válido, mas não substitui uma conclusão mais sólida.