ANÁLISE | Scars Above – Nem Toda Refeição Precisa Ser Banquete
A indústria de games segue crescendo a passos largos, e cada vez mais jogos são lançados, fazendo com que jogadores sejam obrigados a escolher quais que irão jogar – geralmente os mais escolhidos são os maiores, que irão agregar mais valor à compra. Esses grandes lançamentos, contudo, acabam sofrendo não só com semelhanças entre si, mas também por às vezes exigirem um colossal comprometimento, tempo e esforço. Scars Above, como um grande alívio, vem na contramão desse movimento.
Dada a vasta gama de ideias, propostas e formatos que o universo dos games é capaz de proporcionar – e que ainda segue constantemente renovando e quebrando seus próprios paradigmas – existem diversos desenvolvedores que navegam em busca do alusivo “oceano azul”. O pioneirismo de chegar num lugar ainda não explorado e conquistar todo um público para si. Na vanguarda deste movimento geralmente estão os desenvolvedores independentes, que se permitem arriscar um pouco mais e entregar algo fora dos padrões convencionais.
Do outro lado, contudo, estão aqueles que valorizam esses padrões e se apegam a tudo que foi “testado e aprovado”, produzindo jogos que apelam àquilo que agrada o maior número de pessoas possível. mundo aberto, gráficos realistas, árvore de habilidades, personalização de personagem, modo Battle Royale, coletar materiais para criar/melhorar equipamentos, combate “soulslike”… Com o tempo, certas convenções se tornam tão populares que quanto mais delas um jogo conseguir oferecer, mais chances de que ele tenha certo retorno financeiro.
Essa homogeneização não é exclusiva dos jogos, mas própria do capitalismo e da necessidade de vender algo que seja lucrativo – por isso a música pop, os filmes de herói, os restaurantes fast food, as lojas fast fashion… O problema maior nos games, é que dado certos fatores culturais e seu formato de precificação, formou-se o conceito de que o jogador quer cada vez mais valor agregado ao preço que ele paga pelo jogo. Isso gera não só jogos mais e mais parecidos entre si, como também jogos cada vez maiores e mais expansivos. A situação chegou num ponto em que a desenvolvedora de Assassin’s Creed reconheceu que iria voltar atrás em seus próximos lançamentos por ‘Valhalla’ ter sido um jogo “grande demais” e muitos jogadores terem sequer terminado sua campanha.
É nesse cenário sobrecarregado que Scars Above surge como uma solução refrescante e satisfatória, sabendo decidir o que é suficiente com elegância e leveza.
Olhando de fora é fácil classificar o game como “mais um” lançamento no mar de jogos “Triple-A”. Um sci-fi espacial de tiro em terceira pessoa que trás diversas semelhanças visuais de outros títulos populares do gênero, como o mais recente Returnal da Playstation Studios. Por dentro, contudo, a experiência é outra.
Sim, o jogo desenvolvido pela Mad Head Games – estúdio formado por cerca de 130 funcionários residentes entre Sérvia, Bósnia e Herzegovina que faz parte da Saber Interactive, subsidiária da Embracer Group – marca várias dessas “caixinhas AAA” supracitadas. Um mundo aberto ao estilo metroidvania, árvore de habilidades, crafting, gráficos realistas… O grande acerto da equipe, que demonstra grande maturidade e maestria, contudo, está na dosagem oferecida.
Em Scars Above o jogador entra na pele de Kate Ward, uma astronauta e cientista que faz parte da Scars – força-tarefa designada para contato com vida inteligente extraterrestre que deve investigar uma misteriosa estrutura que surge na órbita terrestre, denominada de Metaedro. As coisas tomam um rumo inesperado e Kate deve então explorar um planeta inóspito e desconhecido em busca dos membros de sua equipe e, mais importante ainda, respostas.
Isso é suficiente para discutirmos em termos de história, visto que grande parte do apelo do gênero sci-fi está nos desdobramentos dessas descobertas – e o jogo faz um bom trabalho em criar atmosfera para isso. Porém, para além da atmosfera, o jogador se utilizará das mecânicas proporcionadas pelos desenvolvedores para cruzar essa jornada, e aqui começa o trabalho de saber quando e quanto é o suficiente para que isso ocorra.
Como cientista – apesar de possuir treinamento de tiro – Kate se utiliza de ferramentas para prosseguir, as quais acabam por também serem utilizadas como armas, e a solução aqui está em se aproveitar de suas propriedades e combinações elementais. Seu inimigo está na água? Sua arma de choque será duplamente efetiva, ou então usar a arma de gelo o fará congelar rapidamente. O oponente possui fraqueza contra fogo? Acertá-lo em seu ponto fraco com sua arma de fogo trará bons resultados – a não ser que você esteja debaixo de chuva, o que faz a arma de choque ser a opção ideal. Obstáculos metálicos? Use ácido.
Esse kit básico compõe seu arsenal durante o jogo inteiro, além de alguns itens auxiliares, e o jogo faz um ótimo trabalho de ritmo para que você nunca sinta que faltou algo mais. A sensação é sempre de que você possui ferramentas o suficiente para enfrentar seus desafios, basta combiná-las com seu intelecto – no qual a Mad Head demonstra bastante confiança, sem explicar demais as coisas.
Destaco aqui uma luta contra um chefão robô-aracnídeo extremamente resistente. O combate se desenrola sobre um lago congelado. Logo, a solução para o quebra-cabeça (spoilers?) é aquecer as patas de seu inimigo com sua arma de fogo quando ele estiver sobre o gelo, a fim de que ele afunde e exponha seus componentes elétricos – os quais devem, então, ser atacados com sua arma de choque. É simples, porém engenhoso, realizando muito com pouco – e sem te bombardear com tutoriais.
Essa engenhosidade percorre toda a experiência: o jogador recebe pontos de sobra para desbloquear toda sua árvore de habilidades, o uso dos conceitos de metroidvania permitem progresso constante sem precisar de um mundo gigantesco (embora eu pessoalmente tenha sentido falta de um mapa, reconheço que seria apenas um luxo extra), e existem diversos quebra-cabeças e itens para diversificar a expressão do jogador.
Vindo de um estúdio que anteriormente produzia apenas jogos casuais, é claro que o resultado final não é perfeito. Um dos defeitos mais marcantes, para mim, foi em relação ao contraste claro-escuro. Existe, por exemplo, um momento onde você explora uma área nevada à noite (o clima e o tempo mudam apenas conforme a narrativa, e não de forma dinâmica), o que requer um ajuste da iluminação e contraste por parte dos desenvolvedores. Porém, sair dessa área nesse momento da narrativa e voltar para a floresta, por exemplo, não ajusta dinamicamente a iluminação, deixando tudo mais escuro (talvez isso seja corrigido futuramente).
Há também a óbvia estranheza nas animações faciais, mas as ocorrências em que a câmera se posiciona de forma a deixar isso mais óbvio são poucas, então é perfeitamente possível perdoar um estúdio mais recente do que se fosse, por exemplo, a Bioware com Mass Effect (vulgo Andromeda). A experiência é tão boa em limpar o paladar que seus defeitos são facilmente ignorados.
No geral, Scars Above é uma experiência perfeita para quem jogou AAA’s demais recentemente. Sem fugir para extremos, mas também sem sobrecarregar a experiência, a Mad Head conseguiu provar que nem toda refeição precisa ser um banquete. Às vezes a dose certa nos temperos, e a quantidade ideal de acompanhamentos nos deixa mais do que satisfeitos, sem sentirmos que abandonamos algo para trás por ser “demais”. O estúdio tem um jogo ainda não anunciado baseado numa “franquia famosa de filme de terror”, e eu torço para que eles continuem com os pés no chão. Se vier na dose de Scars Above, eu estou dentro.