Crítica | Drive My Car
Dirigido por Ryusuke Hamaguchi, Drive My Car (2021) é um longa japonês ganhador de diversos prêmios, como Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2021. O filme é uma adaptação do conto homônimo do escritor Haruki Murakami, presente na coletânea Homens Sem Mulheres (2014), sendo adaptado por Takamasa Oe e o próprio Ryusuke, e mescla, ainda, elementos de outros contos da coletânea. O título foi lançado nos cinemas brasileiros em 17 de março, com estreia posterior na MUBI, e pude assistir no aconchegante Cine Grand Café em Porto Alegre (RS).
A história gira em torno de Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um diretor e ator de teatro que, dois anos após perder sua esposa, a roteirista Oto Kafuku (Reika Kirishima), vai para Hiroshima dirigir uma peça adaptada de Tchekhov. Ao chegar, a produção do teatro disponibiliza uma motorista para ele, Misaki Watari (Toko Miura), disposta a dirigir o precioso carro vermelho de Yusuke, um Saab 900 Turbo. A partir de então, ambos começam a desenvolver uma relação de empatia e confiança ao se deslocarem pelas estradas japonesas.
Drive My Car possui 179 minutos de duração, mas não passa a sensação de ser um filme realmente longo. Isso se deve ao bom equilíbrio entre uma cinematografia belíssima, que mostra as paisagens, principalmente nas cenas de viagens de carro, e seu roteiro, que não sobrecarrega com eventos consecutivos em um emaranhado de informações, fazendo uso adequado de subtexto.
Uma síntese entre teatro, literatura e cinema
Por ser uma adaptação do conto de Murakami, é evidente que o filme possui uma estranheza, uma aura misteriosa, que combina muito bem com o estilo de Ryusuke Hamaguchi. O diretor constantemente inter-relaciona seu estilo cinematográfico com o estilo obscuro de outros autores. É o caso de Roda do Destino (2021), onde utiliza o acaso mágico de Éric Rohmer, Asako I & II (2018), na adaptação da escritora Tomoka Shibasaki, Happy Hour (2015), que é a própria extensão de sua misteriosa busca por compreensão, e agora, com Drive My Car (2021), adaptando Murakami.
Assim como o filme coreano Burning (2018), de Lee Chang-dong – uma adaptação do mesmo escritor –, Drive My Car utiliza bastante um subtexto enigmático, que aqui não se dá através de sonhos, delírios ou paródias de Faulkner, mas sim pela própria peça de Tchekhov. As falas da peça revelam muito do interior dos personagens, ressaltando um pessimismo com a vida ou um niilismo russo, evidenciado quando Vânia, o protagonista da peça, diz que poderia ser o próximo Schopenhauer ou Dostoiévski.
“The truth, no matter what it is, isn’t that frightening”.
Essa ambição pessimista é transferida da peça para a vida real, devido ao estado de luto de Yusuke ao perder as mulheres de sua vida, na mesma medida em que a verdade é ocultada aos seus olhos. Isso ocorre porque Murakami constantemente trata de infidelidades de um jeito desolador, mas também porque Ryusuke trabalha em seus filmes a própria natureza da mulher, desta vez através de uma perspectiva baseada em perda, luto e memória. Essa temática determina o próprio buraco abissal do qual Yusuke não consegue sair, desenvolvendo sua dor num mistério jamais resolvido.
Se por um lado é doloroso, por outro, a trajetória do longa se debruça em um aprendizado constante de compreensão e empatia. Aqui, a personagem Misaki Watari é fundamental, pois ao estar perdida em um buraco de natureza semelhante, acaba sendo o próprio motor de enfrentamento que Yusuke precisa – sem suas mulheres. Esse segmento da narrativa contorna gradativamente sua introdução densa, demonstrando com leveza a compaixão que dois seres humanos desenvolvem entre si. E são conectados, é claro, pelo seu carro – o título Drive My Car é algo muito mais significativo do que uma simples referência aos Beatles.
A ambientação em Hiroshima também preenche muito do contexto criado. O teatro em si, ocasionalmente me remeteu ao grupo teatral assassinado pela bomba de Hiroshima, no acontecimento relatado em Labyrinth of Cinema (2019), do diretor Nobuhiko Obayashi. Ao mesmo tempo, essa relação entre teatro e realidade, que busca um esclarecimento sobre uma perda através da memória, lembrou-me do livro Morte na Água (2009) de Kenzaburo Oe, onde o mito e a realidade se misturam. E a necessidade de compreensão nesse contexto teatral é exposta em alguns atores da peça ensaiada no longa, através de outras línguas, como o mandarim e a língua de sinais coreana.
Drive My Car possui uma estética realista e memorável
Tratando de um ponto crucial, a estética do filme é impressionante. A cinematografia de Hidetoshi Shinomiya explora com profundidade a amplitude e a beleza dos cenários, tanto nas áreas mais afastadas – e arborizadas – de Hiroshima, quanto nas cidades. O trabalho com as luzes e as cores é reminiscente, como se as ondas de luzes de semáforos, postes e letreiros estivessem representando uma visão noturna realista. É um aspecto fotográfico que nos conecta com a beleza dessa realidade que tenta ser superada na história.
A trilha sonora de Eiko Ishibashi também é ideal para a abordagem da narrativa, intercalando constantemente trilhas misteriosas e sensíveis com a música tema do filme, que parece conter alguns traços de bossa nova – e uma certa leveza. Há também uma tentativa de simular uma atmosfera jazzy, especialmente em algumas batidas, como é clássico nos livros de Murakami. Ainda assim, a produção sonora valoriza o silêncio em várias partes, como esperado em um filme desse tipo.
Em conclusão, Drive My Car (2021) se consagra como a melhor produção de 2021, retratando brilhantemente a adaptação do conto de Murakami. Semelhante a outras adaptações, como Tony Takitani (2004), de Jun Ichikawa, e Burning (2018), de Lee Chang-dong, o filme retrata a perda visceral de alguém, refletida em uma desilusão existencial enigmática. No entanto, seu percurso projeta o caminho certo para a superação, com dor, beleza e compreensão, embora permaneça uma constante incerteza diante da verdade sobre a vida.