Análises
Análise | Call of Cthulhu – A curiosidade tem seu preço
Howard Phillips Lovecraft (Providence, Rhode Island, 20/08/1890 — Providence, Rhode Island, 15/03/1937), mais conhecido por H. P. Lovecraft, foi um escritor norte-americano que revolucionou o gênero literário de terror e lançou as bases para muitas obras de terror psicológico que temos na atualidade.
Seus contos abordam seres dimensionais malignos cuja simples visão pode enlouquecer instantaneamente um ser humano. A própria loucura em si é um tema muito recorrente em sua obra, onde o conhecimento do oculto é penalizado e motivo de aflição a que o obtém, até que não reste mais nenhum resquício de sanidade e a pessoa perca totalmente o controle e sucumba à escuridão ou escravidão irracional. Outra coisa muito comum em seus textos é mostrar que as pessoas são influenciadas por entidades cósmicas principalmente através de sonhos, e são geralmente artistas os mais sensíveis a essas visões e pesadelos.
O mais conhecido de seus contos, e talvez o mais emblemático deles, é Call of Cthulhu (O Chamado de Cthulhu), onde a entidade, adormecida a várias eras na cidade submarina de R’lyeh, influencia várias pessoas ao redor do mundo, chegando a possuir um culto para invocá-lo, na tentativa de apressar seu despertar, trazendo uma era de caos e loucura sem limites para o mundo – significando provavelmente o fim da humanidade.
É essa mitologia que serve de base para o jogo Call of Cthulhu, desenvolvido pela Cyanide Studios e publicado pela Focus Home Interactive, lançado no dia 30 de outubro deste ano. Os trailers divulgados deixaram os fãs do universo Lovecraftiano com muitas expectativas – eu era um deles, inclusive. Vamos à análise para ver se a expectativa sobreviveu à realidade.
Roteiro e liberdade
Os elementos que caracterizam não apenas o conto principal de Cthulhu, mas que fazem parte de todo o universo e mitologia, se fazem presentes neste jogo. O roteiro básico de uma pessoa simples iniciando uma investigação de forma despretensiosa que vai se transformando em uma espiral decadente até um inferno de horrores, terminando por deixar o protagonista a beira da loucura ou mesmo da morte, é o pilar central do enredo aqui. O tema recorrente da sanidade, o oculto e sobrenatural, os pesadelos, a sensibilidade dos artistas, até mesmo os adjetivos tão amplamente utilizados por Lovecraft – como “maldito”, “terrível”, etc – estão presentes. Pode-se perceber o cuidado dos escritores na tentativa de traduzir o estilo literário para os textos do jogo, de resumos de capítulos até textos de cartas ou livros.
O roteiro, apesar de seguir uma linha familiar aos que já conhecem as obras literárias, tem momentos bem clichês, o que pode incomodar algumas pessoas. É um clichê que lembra filmes de terror antigos, ou mesmo filmes B, o que, no meu caso, não causou maiores problemas porque são gêneros que estou acostumado a assistir e até gosto, mas se o jogador espera uma história profunda ou diálogos ricos pode acabar se decepcionando um pouco.
O jogo não é nem de longe de mundo aberto, pelo contrário, suas fases se passam em áreas bem definidas e com limites que impedem maior exploração, mas isso tem a intenção de fazer com que o jogador possa focar na investigação e análise de detalhes que possam fazer a história avançar.
A história é bastante linear, não possuindo quase nenhuma missão secundária – e quando estas existem, são limitadas ao ambiente em que nos encontramos no momento. Não é possível deixar o ambiente e a história segue basicamente em uma só direção.
Existem muitos momentos de investigação, com um “modo de reconstituição de cena” interessante, que permite descobrir o que aconteceu em determinado lugar com base nos objetos e marcas deixados no ambiente, e que dependem da habilidade de investigação do protagonista – que pode ser evoluída na árvore de habilidades, a qual falaremos mais adiante. O problema maior, nessa mecânica, é que o jogo não deixa a tarefa de chegar nas conclusões da investigação para o jogador, sendo o próprio protagonista quem emite suas opiniões, restando a nós apenas o trabalho de procurar pelas pistas e esperar as conclusões do detetive.
Elementos de RPG
O jogo possui uma árvore de habilidades, que serve como uma “ficha de personagem de RPG”. Logo na introdução temos uma ótima desculpa para distribuir os pontos do personagem, podendo escolher entre Visão, Eloquência, Força, Investigação, Psicologia, Medicina e Ocultismo. No decorrer do jogo, mais pontos são adquiridos e podem ser usados para melhorar essas habilidades – exceto Medicina e Ocultismo, que são melhorados ao encontrar livros com esse tipo de conhecimento. Ao melhorar, por exemplo, a Eloquência, o protagonista consegue ter mais opções de diálogo; ao melhorar Investigação, ele consegue mais informações nas investigações e tem mais facilidade para abrir fechaduras.
Apesar de interessantes e de abrirem novas opções de escolha, essas habilidades acabam não tendo um impacto tão grande nos rumos do jogo – talvez em qual dos finais poderão ser escolhidos, mas não pude perceber mudanças durante as fases. Eis aqui uma mecânica que poderia ter sido melhor aproveitada.
Ambientação e jogabilidade
A ambientação é o ponto alto do jogo, na minha opinião. Ambientes escuros, muitas vezes claustrofóbicos, dão o tom de terror que o tema pede. A história se passa em 1924, que é a data aproximada da história no livro, e o trabalho de caracterização é competente, refletindo a década de 20 nas roupas e tecnologia. A história é recheada de referências, que ajudam a construir o clima de tensão e opressão. Cenários como um sanatório ou uma mansão abandonada são locais perfeitos para transmitir a sensação de medo e impotência, e quase todos os ambientes são ricamente decorados e muito cheios de detalhes.
Muito semelhante à jogabilidade de Amnesia: The Dark Descent, Call of Cthulhu praticamente não possui combate. A estratégia é evitar os inimigos fugindo ou se escondendo. E como no outro jogo, neste também temos efeitos negativos ao olhar diretamente para monstros, ficar no escuro ou em ambientes apertados e fechados, fazendo com que o protagonista entre em pânico, ficando com a vista turva, respiração ofegante e tremendo, até ao ponto de desfalecer.
Vale ressaltar também que, além das habilidades do personagem, temos um medidor de sanidade, que vai diminuindo a medida que o detetive é exposto a itens ocultistas ou vivencia experiências traumáticas. As experiências, sendo parte da história, são obrigatórias, mas outros elementos não, dando ao jogador a opção de zelar – ou não – pela sanidade de nosso herói. É possível visualizar o estado atual de sanidade, o que influenciou para que ele diminuísse e o quanto ainda resta antes de chegar no estágio de loucura.
O jogo possui momentos em que exige do jogador furtividade (o famoso stealth). Estes percursos não são muito difíceis, mas eu senti falta de mais elementos para ajudar, como a possibilidade de lançar objetos na direção oposta para desviar a atenção, por exemplo – algo já comum em jogos atuais. Sendo essencial ter sucesso em se esgueirar nessas fases, seria interessante ter mais recursos para isso.
Aspectos técnicos: Interface, controles, áudio e gráficos
Não tive problemas com controles, nem bugs durante movimentação, então é seguro dizer que foi feito um bom trabalho nesse sentido. Percebi algumas falhas em relação ao áudio, que sumiu em alguns momentos (e só foi possível acompanhar o diálogo por causa da legenda), mas foi algo raro que, por ter acontecido poucas vezes não atrapalhou a experiência. Os efeitos de áudio são bons, a trilha sonora e sons de fundo são bem utilizados e criam o ambiente de tensão desejado.
O jogo está localizado para português brasileiro nos menus e transcrições de documentos, além de possuir legendas, mas o áudio está no idioma original, o inglês, não possuindo dublagem.
Os menus são simples de navegar e dão muitos detalhes do que aconteceu na história até o momento. Temos uma lista completa de personagens, locais, pistas encontradas, traumas vivenciados e descrição detalhada de cada habilidade que pode ser evoluída, sendo exibido um sinal visual quando novos registros são desbloqueados.
Com relação aos gráficos, Call of Cthulhu possui visual mais simples e estilizado. A paleta de cores se concentra muito nos tons verdes, e a arte de tochas e lamparinas é ótima, com destaque para os efeitos de luz e sombra que são essenciais em quase todo o jogo. Um ponto negativo do visual é a animação facial, que parece estranha e artificial, com texturas meio incômodas e baixo sincronismo labial.
Conclusão
Call of Cthulhu é um bom jogo para fãs da obra de Lovecraft e fãs de terror em geral, sendo para mim um deleite ver tantas referências e caminhar por cenários clássicos do gênero de terror (já mencionei o quanto adorei aquele sanatório?). A sensação de impotência por estar desarmado, preso em um ambiente escuro com uma criatura que só pode ser descrita como um horror inominável (para usar os termos do mestre) é fantástica, transmitir essa sensação é algo que merece ser elogiado. E ver os personagens sendo torturados psicologicamente (e as vezes até fisicamente) e cedendo a loucura é uma marca inconfundível desta mitologia tão rica.
No entanto, ele possui falhas bem visíveis que precisam ser toleradas para que o jogador aproveite a experiência. Não espere um roteiro complexo, diálogos profundos nem gráficos realistas. As escolhas não tem tanto impacto na história como seria de se esperar, as mecânicas de furtividade são extremamente simples e o combate ainda mais simples, para não dizer inexistente. Mas se você conseguir superar isso, poderá aproveitar uma jornada intensa de descoberta dos limites da sanidade, caminhar em corredores escuros com seres hediondos à espreita, enquanto gerencia o óleo de sua lamparina que se esgota incrivelmente rápido.
Recomendado para: Fãs de H.P. Lovecraft e terror em geral, pessoas que gostam de jogos focados em história, que não tem problemas com história linear ou cenários fechados e limitados, gostam de detalhes e investigação.
Não recomendado para: Pessoas que fazem questão de jogos de mundo aberto e exploração, demandam gráficos realistas, gostam de jogos com combate, preferem histórias não tão lineares ou que precisam de um roteiro muito bem construído para justificar a linearidade; que não consideram ambientação um ponto forte.
Call of Cthulhu foi lançado no dia 30 de outubro de 2018 para PlayStation 4, Xbox One e PC. Esse review foi elaborado com uma cópia de PC cedido pela Focus Home Interactive.