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Saúde mental e sociedade: Como o mangá de Kabi Nagata retrata a realidade de muitos jovens adultos
“Minha experiência lésbica com a solidão” é uma obra autobiografia da mangaká Kabi Nagata, publicado originalmente no Japão em 2016 pela editora EAST PRESS, e no Brasil foi publicado pela editora NewPOP em dezembro de 2019 com tradução de Thiago Nojiri. A cada quadro a autora compartilha suas inseguranças e, de acordo com contexto que o leitor está inserido, é impossível não se identificar ou sensibilizar com as situações vivenciadas por Nagata.
“Minha experiência lésbica com a solidão” é uma obra autobiografia da mangaká Kabi Nagata, publicado originalmente no Japão em 2016 pela editora EAST PRESS, e no Brasil foi publicado pela editora NewPOP em dezembro de 2019 com tradução de Thiago Nojiri. A cada quadro a autora compartilha suas inseguranças e, de acordo com contexto que o leitor está inserido, é impossível não se identificar ou sensibilizar com as situações vivenciadas por Nagata.
O mangá também é uma reflexão da realidade de jovens adultos que enfrentam dificuldades na sociedade em que estão inclusos. Nessa reportagem mostramos como o mangá de Kabi Nagata reflete como a sociedade japonesa se posiciona sobre a saúde mental da população.
Kabi Nagata encara um limite que havia estabelecido para si. Aos 28 anos, ela nunca havia tido um relacionamento amoroso ou sequer experiências sexuais, assim como uma carteira assinada. Ela percebeu que o sexo não era como nos mangás de ficção.
As marcas de um processo sofrido à vida adulta são expostas como cicatrizes de mutilações e uma ligeira calvície no topo de sua cabeça, até encontrar o que realmente “trazia satisfação para seu coração”.
A história começa há 10 anos, Nagata se formou no ensino médio e iniciou uma faculdade. Até que, depois de frequentar por um semestre, desistiu dos estudos. Ela se deu conta de que estava passando por um transtorno alimentar e também se sentia deprimida. Sentir que perdeu o pertencimento a algum lugar, e a necessidade de frequentar um espaço todos os dias, a deixou ansiosa e fez ela ter a sensação de estar desaparecendo.
A alternativa que encontrou para preencher esse vazio, foi começar a trabalhar por seis dias da semana, mas não demorou muito para Nagata perceber que o trabalho não era bem a resposta para seu dilema. Na época, ela não sabia o que havia de errado. Pensou que o trabalho fosse um lugar onde ela poderia ser reconhecida pelo que fazia, mas não era bem assim.
As necessidades que Nagata sentia é de como qualquer jovem adulto recentemente inserido na sociedade, em que vários aspectos têm que estar em estabilidade como emprego, diploma e família.
Thiago Nojiri, editor e tradutor de mangás na editora New POP, responsável por traduzir o mangá no Brasil, revela que sentia a maior parte dos anseios que a autora tinha. “Embora, eu não tenha como sentir como a autora se sentiu na questão da sexualidade dela, acho que a obra é também para quem vivencia todos os dramas de ser um adulto recém inserido na sociedade”, diz.
A psicóloga Thaise Nascimento diz: “A gente entende que o ser humano não pode focar numa só questão da sua vida”. Ela explica que para se ter uma boa disposição física e mental, é necessário buscar saúde em vários contextos na vida, como o lazer, questão financeira, relações sociais e com si próprio.
A saúde mental ainda é um tema ignorado pelos japoneses, o que resulta em inúmeros casos de suicídios. De acordo com dados estatísticos fornecidos pela Agência Polícia Nacional do Japão, o número de suicídios teve um aumento acentuado no mês de outubro de 2020, cerca de 2.087 e 1.798 no mês de novembro. Embora o motivo do declínio da saúde mental dos japoneses seja a pandemia do novo coronavírus, no ano de 2016 o país teve a taxa de mortalidade por suicídio de 18,5 por 100 mil pessoas com base na pesquisa de Estatísticas Mundiais de Saúde (World Health Statistics). Os fatores que contribuem para a alta taxa de suicídio no Japão podem se originar de diversas questões sociais
O prego que se destaca será martelado
Os provérbios japoneses (também conhecidos como Kotowaza), ajudam a compreender a forma de pensar do povo japonês. “O prego que se destaca será martelado”, é o provérbio que exemplifica o estigma cultural do país. Se a pessoa se destaca entre os demais estará sujeita a críticas.
Raphael Pedraza, 23, nasceu na cidade de Campo Grande em Mato Grosso do Sul, mas, por conta da situação financeira, aos 8 anos se mudou com os pais para o Japão, onde inicialmente residiam em Shizuoka. Atualmente, Raphael é formado em Letras – Inglês pela Universidade de Quioto e reside na cidade de Osaka. Ele conta que os brasileiros ao se mudarem para o Japão vão trabalhar em fábricas, que foi o primeiro serviço dos pais dele e também já trabalhou em fábrica. Raphael diz que não tinha problemas em se adequar às normas sociais por conta de ter crescido no Japão, mas acredita que os japoneses são “robotizados” por não quererem se destacar, em razão do destaque ser vergonhoso para eles. “E isso é ensinado desde criança. É um tabu”, diz.
Raphael relata que essa realidade é muito presente no trabalho, onde a hierarquia é mais etária do que a habilidade. “Você não pode simplesmente chegar e mostrar todas as suas habilidades esperando com expectativa de crescer lá. O que faz crescer é o tempo em que o funcionário trabalha na empresa, isso sim é notório”, explica.
A situação trabalhista dos imigrantes no Japão também é relatada pela jornalista Juliana Sayuri, que descreve a rotina de trabalho. Aiko Duarte, 22, trabalha numa fábrica e também diz que esse é o destino da maioria dos brasileiros que vão para o Japão. Quando iniciou o trabalho na fábrica de linha de montagem, ele conta que embora seja uma tarefa que qualquer um pode fazer é ao mesmo tempo massante. “Eu me sentia muito uma peça, um peão. E era muito repetitivo. Eu sentia que podia ser substituído a qualquer momento”, diz.
Aiko revela que se sentia mal, de que o clima não era muito bom. “Era muito barulho, muita gente séria, muitas regras e muita pressão do chefe. Você não podia ficar parado”, conta.
Raphael observa que os japoneses têm consciência da problemática no trabalho e até cita o termo Karoshi, que em sua tradução literal significa “Morte por excesso de trabalho”, mas para os japoneses o esgotamento mental é inevitável. “Se você for ao médico, o máximo que ele pode fazer é te receitar um remédio para você dormir melhor e voltar ao trabalho”, diz Raphael.
Apesar de tudo, em “Minha experiência lésbica com a solidão”, a sensação de detono trazia um sentimento de alegria para autora. Como se os machucados tirassem um peso dela, fazendo com que as pessoas tivessem a facilidade de aceitá-la. E ela cita que o esforço só vale se for reconhecido. Mas depois de passar por vários episódios de compulsão alimentar, devido à anorexia, ela simplesmente não conseguiu sair para trabalhar e no fim é demitida.
Nojiri diz que a maioria das pessoas japonesas não tem o costume de frequentar um psicólogo: “Se você disser isso, as pessoas vão dizer que você tá maluca, que está exagerando”. E o tradutor observa que não há uma discussão avançada sobre saúde mental no Japão, apesar de todo o histórico e dados que refletem a problemática.
“É um ciclo vicioso, a sociedade ferra com a cabeça das pessoas, as pessoas não se tratam e depois se matam, simples assim”, conclui Nojiri.
Nesse contexto, a psicóloga Thaise adverte: “Quando a gente não trabalha a nossa questão social, lazer, boas relações afetivas e vínculos, isso faz que com a gente não construa as nossas referências” e continua “Quando eu não construo minhas referências, vou ter a maior possibilidade de adquirir ansiedade, depressão e de não ter essa visualização de quem eu sou”.
A luz no fim do túnel
O dinheiro guardado no banco não era resposta para os problemas de Nagata, então reconheceu que precisava de algo além do dinheiro. A decepção consigo mesma a levou a pensamentos suicidas, mas a ideia de morte fez levar a consideração uma mudança para tudo.
A autora queria o reconhecimento dos pais, apesar de tudo. Ela passou por um período de inúmeras entrevistas, até finalmente perceber que fazer mangás poderia levá-la ao lugar que pertencia. Mas a pressão dos pais por ter um emprego fixo com carteira assinada era maior. Decidiu não dar ouvidos a isso e seguir para sua carreira de mangás, participando de concursos e finalmente conseguir ter um editor.
Para Nojiri, a pressão social existe independentemente da região e cultura, mas acredita que o Japão, por ser um país muito mais estruturado, possui um sistema de tutela para o necessitado. Nojiri diz que a própria autora é um exemplo disso, por conseguir ficar na casa dos pais, ter um dinheiro guardado e etc. “Tudo o que ela não conseguiu alcançar não foi um impedimento para ela não morrer de fome”, diz.
O governo japonês aponta uma projeção de crescimento econômico em 2021 e a taxa de desemprego tem a primeira queda em 5 meses, no contexto da pandemia.
O Japão também desperta a curiosidade de alguns visitantes. Rodrigo Coelho, Youtuber, teve a oportunidade da bolsa de estudos de morar um período de 7 meses, na cidade de Osaka. Ele conta que a própria universidade cria programas para as pessoas se sentirem bem, como “speaking partner”, em que se cria um perfil e a universidade tenta fazer um “match” com japoneses que também querem aprender a falar inglês e que haja a troca de experiências. Mas também cita a “pressão” da universidade: “Os professores colocam uma pressão gigantesca em cima de resultados e a universidade é mais importante do que tudo. Ela é mais importante do que a sua saúde mental, mais importante do que sua família”, diz.
Sobre a família, Rodrigo observa que o conceito é bem diferente do Brasil: “Lá eles vão crescendo e vão se distanciando da família e que cada um toma conta da sua própria vida.”
O youtuber também ressalta sobre o tema da saúde mental no Japão e por serem pessoas focadas no trabalho, as relações dentro de casa acabam sendo prejudicadas. “O que eu percebo é que o Japão já sabe desses problemas que acontecem, existem campanhas e medidas, mas a cultura é tão forte que essas campanhas e medidas é difícil terem o impacto necessário. Porque isso tem que vir das pessoas”, relata.
Embora tenha observado esses problemas, Rodrigo teve uma experiência positiva ao morar no Japão e diz que nós temos muito que aprender com os japoneses. “Os japoneses sabem se respeitar, sabem respeitar a coletividade, eles respeitam o tradicional e abraçam o novo. Tanto que o Japão é esse paradoxo entre novo e o antigo“, diz. Rodrigo também acha que os japoneses têm que aprender algo importante com o brasileiros: “Eu acredito que os japoneses têm que aprender um pouco mais de relações interpessoais e família com a gente”.
Essa dificuldade em criar relações também pode ser percebido no mangá em que a autora não consegue atingir as expectativas dos pais e acaba se distanciando. Porém, a conclusão que Nagata tem é aprender a se valorizar mais e cuidar de si mesma. Essa conclusão motivou a autora a querer entender seus sentimentos. Dessa forma, ela teve a iniciativa de marcar um encontro com uma garota de programa lésbica. Essa experiência a motivou a fazer um mangá sobre isso e teve uma repercussão que ela jamais imaginaria.
Ela então havia descoberto o que trazia satisfação para seu coração. Era escrever histórias que cheguem às pessoas e que ela fosse reconhecida por isso.
Jornalista em formação. Aspirante a Escritora. Videogames sempre fizeram parte da minha vida.