BGS
BGS e CCXP – O Brasil Nerd Contra o Mundo
A BGS e CCXP, que aconteceram dentro dos últimos dois meses, estão entre os maiores eventos geeks do mundo. O que podemos aprender com isso?
Nos últimos dois meses tivemos em nosso país dois gigantescos eventos, que retornaram ao formato presencial após dois anos de pandemia: a Brasil Game Show, focada em jogos eletrônicos, e a Comic Con Experience, voltada para o universo geek e da cultura pop. Analisar ambos os eventos, comparando-os com seus maiores rivais mundo afora e também entre si – visto que seus respectivos públicos muito frequentemente se entrelaçam – pode se revelar deveras interessante e motivador. E é o que faremos a seguir.
Entre os maiores do mundo
A Electronic Entertainment Expo – ou E3 – é considerada uma das maiores e mais importantes convenções de jogos eletrônicos do mundo. Realizada anualmente em Los Angeles (salvo exceções como este ano devido a pandemia global), seu recorde de visitantes é de 70 mil pessoas em 2005. No período entre 2016 e 2019, quando foi aberta para o público geral, alcançou a marca de 69.200 visitantes. Em termos de público, a maior do mundo é a Gamescom, realizada na Alemanha desde 2009, com a marca de 373 mil visitantes em 2019. Neste mesmo ano, a Brasil Game Show (BGS), que começou também em 2009 no Rio de Janeiro mas desde 2012 acontece em São Paulo, alcançou a marca de mais de 325 mil visitantes. Embora os números oficiais de 2022 ainda não tenham sido revelados, é possível que a marca tenha sido superada, considerando que nesse ano o evento ocorreu ao longo de seis dias, e em 2019 foram apenas quatro. A Gamescom, entretanto, registrou uma grande queda em seu público, que caiu para 265 mil.
Paralelamente, o Guinness World Records afirma que a maior convenção de fãs de quadrinhos do mundo foi a San Diego Comic Con (SDCC) de 2015, com um público de 167 mil pessoas. Em 2019, a Comic Con Experience (CCXP), que também acontece em São Paulo, alcançou a marca de 280 mil visitantes – talvez o recorde continue nas mãos da SDCC pois a CCXP se denomina um “festival da cultura pop”, mas a comparação permanece válida. Durante suas edições online, em 2020 e 2021 (durante a pandemia), o evento alcançou, respectivamente, 3,5 e 5 milhões de pessoas em 139 países.
Não é um exagero afirmar, portanto, que o Brasil é uma potência mundial em termos de consumidores de cultura geek/pop, incluindo games, quadrinhos, séries e filmes. Cabe reforçar também que, estando apenas atrás da África do Sul, somos o segundo país do mundo em termos de tempo de uso diário de internet – uma média de 9 horas e 42 minutos por dia – mesmo que mais que 40 milhões de brasileiros ainda não se conectem à internet (cerca de 18,7% da população).
Já é possível pensar em diversas perguntas: por que gostamos tanto de consumir esse tipo de conteúdo? Como podemos aproveitar melhor esse público de forma a competir globalmente? E, talvez mais importante, como incentivar a produção nacional de cultura geek?
Afinal, tanto a Gamescom quanto a Comic Con são tradicional e originalmente conhecidas por seu espaço e apoio a artistas e estúdios independentes, além de apresentarem as novidades dos grandes estúdios com muito floreio e empolgação. Se considerarmos como os filmes baseados em quadrinhos de heróis têm constantemente movimentado as maiores bilheterias do cinema ano após ano, e como a própria indústria dos games segue a passos largos se tornando uma das mais lucrativas do mundo do entretenimento, essa deveria ser uma das pautas mais importantes entre os responsáveis e formadores de opinião sobre cultura do Brasil.
Embora as respostas para essas perguntas possam não ser muito fáceis, o simples fato de as perguntarmos trás força e coloca este universo num lugar de merecido destaque entre os meios de entretenimento e cultura. O vizinho Rock in Rio, maior festival de música do país e um dos maiores do mundo, recebeu 700 mil pessoas esse ano. Mas se considerarmos que o evento durou sete dias, teve 300 shows e que sua forma de consumo é diferente – o fã vai para ver a performance dos artistas, e não visitar como num “formato museu” – o mundo nerd não está tão atrás.
É mais fácil notar, contudo, as principais forças e fraquezas que a BGS e a CCXP possuem entre si, especialmente por termos tido a oportunidade de visitar ambos eventos neste ano.
Grandes estrelas x Pequenas comunidades
Provavelmente as maiores forças que cada evento possui é também o que o outro tem em falta, dada a natureza de cada um. Enquanto a CCXP é fortemente marcada pela fantasia de conhecer seus heróis, os grandes astros de cinema que dão vida a seus personagens favoritos, pegar autógrafos e tirar fotos com seus ídolos, a BGS é o lugar perfeito para encontrar as pessoas com quem você só interage pela internet durante o ano todo – seus streamers e ‘webamigos’ favoritos, que curtem e jogam os mesmos jogos que você.
A interatividade dos jogos, especialmente os multiplayers online, cria naturalmente esse ecossistema de comunidades conectadas à distância, e é extremamente comum ver criadores de conteúdo pequenos, médios e grandes se encontrando pessoalmente com seu chat e amigos do Discord na Brasil Game Show, o que cria diversas oportunidades mais acessíveis para o público – diferente das grandes estrelas que ficam atrás de altas barreiras (vulgo “pagar para conhecer”), seguranças e entrevistas exclusivas. Ao mesmo tempo, por mais que as grandes personalidades ‘rockstar’ sejam relativamente recentes na indústria dos games, ter presente nomes como Hideo Kojima, Cory Barlog e Neil Druckmann na BGS poderiam tornar o evento ainda mais imperdível para os fãs.
Já a CCXP, refém de seus grandes nomes, torna-se um evento mais caro e consequentemente mais exclusivo e individual, acabando por parecer quase corporativo demais. O visitante vai, vê seu ator/atriz favorito, mas não tem muito mais com quem interagir além de marcas e empresas – alimentar comunidades menores preencheria esse espaço mais humano e fortaleceria o evento.
Ativações, Acessibilidade e Novidades
A presença de grandes marcas e títulos chama atenção e olhares dos fãs mundo afora, mas também pode ser uma espada de dois gumes para os visitantes do evento. A grande ativação da vez na CCXP era a experiência exclusiva da série de The Last of Us, e consequentemente também a mais disputada. Mesmo com agendamento de horário e distribuição de pulseiras, muito frequentemente visitantes saíam frustrados por não conseguirem participar – às vezes até brigando com os organizadores. Não eram poucas as pessoas que desanimavam de interagir com suas franquias favoritas ao descobrirem o tamanho das filas que precisariam encarar.
A BGS, por sua vez, possuía diversas estações de jogos para que os fãs pudessem experimentar, o que tornava o evento mais “aproveitável” nesse sentido – em especial para quem só pôde visitá-lo por um dia. Ao mesmo tempo, grandes títulos estavam em falta – os únicos games jogáveis no evento que ainda não tinham sido lançados eram Street Fighter 6, que teve um beta fechado no mesmo fim de semana, Mario + Rabbids Sparks of Hope, que seria lançado na semana seguinte, e One Piece Odyssey, que apesar de ser um game de qualidade, não empolgou tanto o público.
Intercalar ativações mais rápidas com títulos imperdíveis seria o equilíbrio ideal para ambos os eventos, a fim de que não se tornem exclusivos demais ou interessantes de menos. Enquanto todos os visitantes da BGS podiam assistir à Sonic Symphony ou ao trailer inédito do filme de Super Mario Bros, alguns fãs chegaram a ficar mais de dois dias na fila para ter acesso ao Palco Thunder da CCXP, onde trailers de filmes como de ‘Indiana Jones e o Chamado do Destino’ e ‘Guardiões da Galáxia Volume 3’ foram revelados mundialmente pela primeira vez – além, claro, da presença de grandes estrelas do cinema.
Estrutura Online
Neste ponto é incomparável a vantagem da CCXP sobre a BGS – em especial por possuir toda a estrutura da Omelete Company por trás. Ter esses grandes títulos e nomes atrelados ao evento traz força mundialmente falando, mas ser capaz de transmitir tudo o que acontece ao vivo para o mundo todo faz toda a diferença. A BGS possui diversos campeonatos e shows sendo transmitidos no decorrer do evento, mas há espaço para muito mais – como a tradicional E3, The Game Awards ou a própria Gamescom com a Opening Night Live.
Usar o enorme talento brasileiro para transmitir ao mundo os jogos que estarão presentes no evento, buscar revelações e anúncios exclusivos, entrevistas e bastidores é uma das formas mais produtivas de trazer interesse internacional tanto antes, durante quanto depois do evento. E essa ferramenta poderia ser muito bem utilizada no nosso último ponto:
Apoio à produção nacional/independente
A Artists’ Valley é um local tradicional da Comic Con, onde os fãs podem conhecer seus artistas, quadrinistas e ilustradores favoritos e apoiá-los comprando seus produtos. A estrutura da área, contudo, é mísera se comparada a de outras grandes marcas presentes no evento. Sem mencionar a Avenida Indie da BGS, que costumeiramente consiste num corredor apertado e pouco luxuoso onde se encontram os desenvolvedores independentes.
Não só somos capazes de realizar os maiores eventos de cultura geek do mundo, também somos considerados alguns dos mais criativos do planeta. Existem diversos artistas e desenvolvedores brasileiros – dentro e fora do Brasil – que merecem destaque nestes espaços, os quais poderiam ser muito mais aproveitados para fortalecer o desenvolvimento cultural no país. Showcases online, entrevistas, bastidores, trailers lado a lado com outros grandes nomes… O Brasil pode E DEVE usar sua enorme plataforma para empurrar seus iguais com o cotovelo e conquistar seu merecido espaço não só como consumidores mas também como produtores de conteúdo.
O nerd brasileiro pode sim bater no peito e se considerar gigante. Mas mesmo os maiores do mundo ainda têm muito a melhorar, tal como a BGS e CCXP. E um dos exercícios que mais carecem de atenção é olhar para nós mesmos, acreditar na nossa capacidade e valorizar o criador brasileiro. Quem sabe se, ao invés de disputarmos pelo entretenimento vindo do exterior, nós uníssemos forças para fortalecer a nossa própria cultura? Provavelmente seríamos insuperáveis.
Formado em Design de Games pela Universidade Anhembi Morumbi e com mais de 5 anos de experiência como Motion Designer e Editor de Vídeo, já palestrou sobre GameDev e leva os joguinhos à sério por mais que sua mãe diga que não dá dinheiro (não dá)