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Até que ponto é possível separar a arte do artista?
É possível continuar consumindo a arte de alguém que você não admira mais? Como separar a arte do artista e de as controvérsias de sua vida pessoal?
Um homem entra em um restaurante e pede 8 alcachofras – 4 fritas no óleo e 4 na manteiga. Quando o garçom traz a refeição, o homem pergunta quais são as fritas em óleo e quais são as fritas em manteiga. O garçom responde que é necessário cheirá-las para saber a diferença. Inconformado com a resposta o homem atira o prato no rosto do garçom, ferindo a face esquerda e o olho do pobre coitado. Parece até uma anedota pouco inspirada, mas é uma história real ocorrida em 1604 e registrada pela polícia de Roma. Não seria o primeiro delito deste homem, que já carregava má reputação por se envolver em brigas, perturbar a paz pública, atirar pedras em policiais e senhoras de idade e até mesmo assaltar e apunhalar desafetos. Este homem até mesmo participaria de uma briga de gangues em 1606, assassinando outro sujeito e passando o resto de seus dias fugindo das autoridades. Este homem criminoso é Caravaggio, um dos pintores mais influentes da História e um dos maiores nomes do estilo barroco. Da técnica de Caravaggio surgiu o tenebrismo, uma das maiores revoluções referente ao uso de sombra e luz na pintura. As obras de Caravaggio estão presentes nos museus mais importantes e visitados da Terra, e seguem servindo como grande fonte de estudo e inspiração artística.
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Quando confrontamos os diferentes campos da vida de Caravaggio é impossível não sentir o impacto da dualidade do artista. Ao mesmo tempo que temos o homem bruto que andava pelas ruas da Itália procurando confusão temos o artista sensível e refinado, dono de um senso estético único. E Caravaggio não é um caso isolado. Basta uma rápida olhada na biografia de alguns dos maiores artistas de diversos campos artísticos para encontrarmos comportamentos que, hoje em dia ou mesmo à sua época, são condenáveis. Afinal, é possível separar a arte do artista?
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A discussão sobre o ponto de separação entre o artista e sua arte sempre existiu, mas tomou força no ambiente digital nos últimos anos. Com a apropriação da internet como ferramenta de debate, a exposição de falas e atos contraditórios se tornou um caminho para repensar a relação entre o artista e sua obra. Hoje, com maneiras mais eficazes de fazer nossas opiniões serem ouvidas, podemos questionar o que consumimos. Podemos apoiar (ou refutar) pautas. Movimentos importantes aconteceram interna e externamente na indústria do entretenimento, retomando discussões pertinentes sobre a igualdade de espaço entre gêneros, raças, nacionalidades e identidade sexual, ao mesmo tempo que se busca um desmonte de estruturas de poder odiosas nos espaços de produção artística. Um grande exemplo é o #MeToo, que evidenciou os predadores sexuais, pedófilos e estupradores que circulam livremente por Hollywood. São mudanças necessárias, que devem continuar existindo para construir ambientes justos e saudáveis de criação.
Mas, após revelações indigestas, como lidar com a arte de alguém que, em sua vida privada, não possui mais o mesmo impacto positivo de sua trajetória artística? É possível ouvir músicas onde Michael Jackson nos pede para “curar o mundo” enquanto as acusações de pedofilia contra o Rei do Pop continuam aumentando? Ainda podemos assistir House of Cards e enxergar que o autor dos atos horrendos vistos em tela é Frank Underwood, e não Kevin Spacey? É possível ignorar a filmografia de Hitchcock e toda a influência do diretor? A arte de alguém que rompeu com as normas de nossa sociedade pode continuar sendo consumida?
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Eu já adianto que não pretendo cravar nenhum tipo de veredito com esse texto. Quero abrir um espaço para uma real reflexão, enxergando novos horizontes sobre o tema – que certamente será cada vez mais comum neste tempo de mudanças, de expurgo. Não acredito que exista uma resposta universal para o dilema. A mim me parece que, além de qualquer tipo de racionalização e reflexão, no final prevalecerá o sentimento daquele que aprecia a obra artística. No final é ele que importa. A desilusão é poderosa, principalmente quando ocorre a ruptura de uma relação realmente significativa. Romper com alguém que nos atrai admiração e respeito é muito mais doloroso. Talvez você não se importe em deixar de assistir os filmes de Roman Polanski se não for um grande fã de seu trabalho, mas para alguém que preza sua obra é uma perda irreparável. E, de fato, é uma perda. Somos feitos das obras de arte que passam por nossa trajetória de vida. E são elas que nos acompanham e constroem nosso referente, influenciando a maneira como enxergamos as próximas obras de arte com que vamos entrar em contato. Portanto, abandonar a obra é também abandonar parte significativa de sua formação artística – se é que é possível fazer isto de forma intencional. Você pode expurgar o seu gosto pela obra de Chaplin, mas como vai expurgar a influência que a obra de Chaplin teve sobre você enquanto assiste uma comédia, por exemplo? Uma vez consumida, a obra estará sempre com você, conscientemente ou não.
À parte isso, acredito que nosso exercício como admiradores da arte é realizar a separação entre o artista e sua arte. Aceitar que a arte é maior que quem a produz é libertação – inclusive para o artista. A arte é uma matéria do humano, e humanos são falhos. Por outro lado, assim como outros produtos da humanidade, a arte percorre o caminho da busca pela perfeição – mesmo quando sua pesquisa é a procura pela imperfeição. É utópico pensar que existe a obra de arte perfeita, assim como o modelo político perfeito, ou ideia filosófica perfeita e estrutura religiosa perfeita, mas há nesta busca utópica a construção de ideias, valores e reflexões que transcendem o indivíduo e se tornam coletivo, se tornam patrimônio da humanidade. A arte, ao ser feita, não pertence mais apenas ao artista, pertence ao olhar, audição e tato de quem a consome. E não estou dizendo que a arte é algo divino, superior, nada disso. A arte ainda é humana, acima de tudo. E é em seu potencial de conectar-se com a humanidade, de impulsionar-nos ao caminho da reflexão e aceitação da condição humana, que a arte colabora para com a evolução de nossos povos. A arte é repleta de nosso melhor e pior como espécie.
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Então, sobre a ideia de banir a arte de um artista odioso, vejo 3 principais problemas. Entre eles:
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1) A arte produzida não é mais única e exclusivamente de sua propriedade
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2) A arte não pode ser feita por pessoas perfeitas, visto que não é possível para o homem e para a mulher alcançar a perfeição.
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Ao negar a arte de pessoas que são imperfeitas, negaremos toda a arte em si. Ok, a perfeição não é a questão. Estamos falando apenas de pessoas que extrapolaram demais do aceitável, então? Mas qual medida é essa? O que é aceitável ou não? Se o contexto se torna ainda mais difícil olhando os tempos atuais, imagine se compararmos com humanos de diferentes épocas, culturas e biografias. Deveremos criar uma espécie de tabela, de escala, onde calcularemos o nível de falhas dos artistas para definir o que deve ou não ser consumido? É necessário ser coerente. Se chegarmos a um consenso que a arte de alguém que cometeu atos horríveis precisa ser banida, precisaremos então banir todos os transgressores. Mas a arte não é feita somente por aquele que, de fato, assina a obra. Os filmes de Hitchcock não são resultado apenas de seu trabalho. Existem atores, câmeras, roteiristas, diretores de arte… Uma infinidade de profissionais também são responsáveis pelos diversos “um filme de Alfred Hitchcock”. O cinema é uma arte coletiva, mas muitas não são – alguns pensarão. Mas, repito, se toda arte ao ser feita é de propriedade da humanidade, ela continua sendo recriada e ganha camadas graças ao nosso olhar. Ou seja, também somos criadores das artes que consumimos – e não poderemos nos excluir da responsabilidade. Bane-se também o nosso direito de apreciar a arte? De ressignificar? De criticar?
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É preciso aceitar que nossas falhas são parte também da arte que produzimos. É possível entender que justamente graças às suas imperfeições como ser humano Caravaggio conseguiu transpor o obscuro, o assombroso e o cruel com tamanha personalidade. É na sua transgressão que o artista encontrou a necessidade de unir temas religiosos com o mundano, retratando em suas pinturas não criaturas celestiais e angelicais, mas o povo. Prostitutas, mendigos, doentes e crianças de rua trouxeram não só realismo para seus quadros, mas tornavam a arte representativa a quem a admirasse – próxima de sua realidade. Era necessário atirar alcachofras nas pessoas para produzir quadros magníficos? Cometer assassinatos para encontrar outros caminhos criativos de expressão? Não. Mas Caravaggio agia desta forma porque era humano, porque possuía temperamento e/ou condições psicológicas que o levavam a isso. Em suas falhas Caravaggio agrediu nosso consenso de humanidade, mas também nos elevou com a sua arte. E deixo bem entendido: não estou romantizando falhas de caráter e atribuindo genialidade e talento a elas – nem fazendo o famoso “passar pano”. Chaplin colecionou controvérsias em sua vida amorosa, e seus relacionamentos com menores de idade hoje teriam outro nome. Não acredito que precisava agir como agia para criar toda sua obra, indiscutivelmente importante para a história do cinema. Hitchcock não precisaria abusar moral e sexualmente de suas atrizes para realizar alguns dos filmes mais geniais e influentes já feitos. A depressão pode sim trazer foco, possibilitar um estado de imersão na criação, mas não acho que Van Gogh precisava carregar tanta tristeza para ser o grande artista que é – ainda mais quando percebemos que Van Gogh viveu a dor de sua arte, mas não o prestígio. Michael Jackson poderia ter sido um grande superstar mesmo sem as agressões e torturas que sofreu nas mãos de Joe Jackson. Franz Kafka continuaria sendo um grande escritor mesmo se não carregasse em seu peito a solidão, a tristeza e o medo causados por sua relação conflituosa com o pai. Porém, a história não quis assim. Machucando ou sendo machucados, estes artistas criaram arte com as condições geradas por seu mundo interno e externo, e não podemos ignorar o impacto gerado em suas obras.
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Isto nos leva a outro importante fator que devemos avaliar nesta discussão: 3) aceitar que a transgressão de um artista é maior que sua obra é concordar que a falha humana é maior que a arte, a virtude humana, em si. Banir a arte em decorrência de um ato desvirtuoso nos tira do contato com o material artístico e tudo que ele representa, além de dar força ao vicioso e mantê-lo vivo. É mais vantajoso que utilizemos da própria arte criada para discutir e combater a transgressão, o pecado. É como se começássemos a usar conjunções ao lembrar da arte de determinado artista. “Ele era um grande pintor, mas…“. “Ele era um grande produtor, porém…”. “Ela era uma excelente artesã, no entanto…”. Desta forma, usamos a arte de artistas controversos como ferramenta para combater suas próprias polêmicas.
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Essa solução não só nos permite preservar a arte como também soluciona outro grande problema, o de cometer injustiças. A exposição acaba gerando julgamentos prévios, que mesmo sem provas ou comprovações, já condenam e deixam profissionais marcados. Com a polarização do ambiente digital, alguns profissionais se tornam alvos e têm sua imagem marcada, sendo rotulados sem mesmo receberem o benefício da dúvida. É o caso de Woody Allen. Pelos fatos (veja bem, pelos fatos), Allen pende mais a ser inocente que o contrário. Mesmo assim, Woody Allen ainda é visto com desconfiança, e sempre é citado em artigos quando discute-se sobre artistas controversos – sendo colocado lado a lado de pessoas comprovadamente culpadas. Assim sobrepõe-se uma imagem sobre Woody Allen que, mesmo que venha a confirmar definitivamente sua inocência algum dia, já estará marcado de forma negativa – e em tempos onde pouco se importam em verificar os dados, é um assassinato de sua reputação. Antonio Salieri, compositor e maestro, é lembrado mais por sua rivalidade com Mozart e por ocupar o topo da lista de suspeitos do assassinato de um dos maiores nomes da música. Depois de séculos, as confirmações de que Mozart morreu de causas naturais tem se fortalecido, mas o estrago já está feito. A má fama de Salieri já antecede sua arte. Se houvéssemos optado por abdicar das criações de Salieri teríamos perdido significativa produção musical, além de injustiçar um artista.
Mas estando comprovado a culpa do artista, como reagir? Além de nossa relação pessoal com artista e obra, há um fator determinante e importantíssimo: o dinheiro. Como podemos continuar consumindo obras sabendo que estamos aumentando o capital, o status e o poder de quem as produziu? Isto se torna ainda mais preocupante quando pensamos que estamos alimentando estruturas que favorecem a manipulação e o modus operandi de abusadores, corruptos e criminosos. Harvey Weinstein nunca teria conseguido assediar sexualmente de mais de 80 mulheres da indústria cinematográfica e seguir ileso por décadas se não tivesse poder para isto. Segundo o apresentado no documentário Leaving Neverland, Michael Jackson nunca teria criado uma estrutura para se aproximar e abusar sexualmente de crianças se não tivesse dinheiro e fama o suficiente para isto. No caso de Michael Jackson é ainda mais preocupante pensar que, aceitando os depoimentos presentes no documentário como reais, não foi apenas sua fortuna que o fez se aproximar das famílias das vítimas, mas sim o fascínio que aquelas pessoas e o mundo inteiro tinham e ainda tem por sua obra. Ou seja, por mais que controlemos nossa reflexão e emoção acerca do tópico, temos uma questão muito prática aqui. Consumir a obra de um artista controverso é dar poder a ele, seja com recursos financeiros, seja com sua influência. Ou mesmo ao mobilizar movimentos contrários. Realizar movimentos de acusação podem gerar movimentos de defesa. Realizar movimentos de boicote pode gerar movimentos de consumo. É necessário se anteceder a estratégias que transformem o anti em pró. Por vezes, é mais favorável concentrar energias em operar a favor de algo. Talvez o boicote a uma produção racista não seja tão proveitoso quanto o apoio a iniciativas que lutem a favor da representatividade e equilíbrio de oportunidades. Talvez xingar muito no Twitter aquele ator misógino não seja tão poderoso quanto apoiar o trabalho de atrizes, diretoras, roteiristas e produtoras que pensam a igualdade entre gêneros em Hollywood.
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Por mais que tenhamos muitas reflexões a fazer, volto: esta escolha é única e totalmente de quem está consumindo a obra de arte. Por mais que separar a arte do artista pareça o certo a ser feito, sua reação interna ao descobrir que seu artista favorito não é tão iluminado pode ser horrível. Talvez sua arte não se comunique mais com você como antes. Ou o contrário. Mesmo sabendo que alguém cometeu monstruosidades, a relação com sua arte continua inabalável pois ela marcou sua vida profundamente, pois ela já foi ressignificada por você. A escolha é sua. O que não podemos perder é a capacidade de usar a arte como uma ferramenta poderosa de comunicação, que age como um instrumento de evolução pessoal e de toda a humanidade. Não podemos perder a oportunidade de refletir nossa condição de humanos, sempre fadada ao erro, que nos possibilita criar obras de arte fantásticas. Antes de tudo, somos cheios de camadas e coração, exatamente como as alcachofras de Caravaggio.
Texto publicado originalmente em Multverso Geek em março/2019
Este artigo é um complemento a crítica de Tár – confira aqui!