Análises
Análise | Assassin’s Creed Mirage é um mundo de sombras, areias e sangue
Eu falo isso sem nenhum pingo de remorso: eu era fã de Assassin ‘s Creed. (ênfase no “era”). Isso porque os rumos que a série tomou em direção ao universo do RPG de ação com games cada vez mais longos e “inchados” de conteúdo estava me desanimando a continuar investindo meu tempo na franquia.
A gota d’água foi em Valhalla, o título mais recente. Uma história sem pé nem cabeça (algo que precisa ser muito “fora da casinha” em termos de Assassin’s Creed), um protagonista detestável e um contexto histórico desinteressante junto de uma campanha que parecia sem fim. Tudo isso me convencia que definitivamente essa seria minha última tentativa com a série.
Porém, eis que um raio de esperança brilha, vindo do Oriente em meio às areias quentes do deserto de Bagdá. Brilhando mais do que a joia mais preciosa de um sultão, Assassin’s Creed Mirage é a nova entrada na série de games com mais de 15 anos da Ubisoft que promete trazer de volta alguns elementos e mecânicas que fizeram sucesso na franquia ao mesmo tempo que tenta “enxugar” o conteúdo do título e trazer uma experiência mais compacta.
Pode não ser um retorno perfeito às origens da franquia, mas para os jogadores de longa data como eu é me colocar na fala de Michael Corleone em O Poderoso Chefão III: “Quando eu achava que estava fora, eles me puxam de volta!”
Mil e um assassinos
Deixamos para trás as paisagens rurais e monótonas da Inglaterra do século IX e retornamos ao Oriente Médio, localidade do primeiro jogo da franquia. Porém, enquanto a jornada de Altair atravessava os tempos das cruzadas na Terra Santa, a história do jovem Basim gira em torno da região de Bagdá em 870 DC. A região era um centro de comércio e de conhecimento durante esse período e oferece muitos detalhes históricos para descobrir.
Esse é o plano de fundo que Assassin’s Creed Mirage oferece ao jogador além de uma experiência mais direta, simples e compacta com a jogabilidade clássica da série. Infelizmente em termos de história eu não posso afirmar que jogadores novos ou aqueles que não jogaram o título anterior, Valhalla, conseguirão aproveitar Mirage ao máximo. Isso porque nem mesmo quem já é jogador de carteirinha da franquia há 15 anos irá conseguir entender a confusão do desfecho dessa narrativa.
Enquanto que os primeiros atos e o meio do game acompanham a fórmula já conhecida de narrativa da série que acompanha Basim desde quando ele é um simples ladrão na região de Ambar, passando por uma experiência traumática, entrando na Irmandade dos Assassinos e caçando seus alvos em Bagdá para libertar o povo e descobrir a verdade, a história simplesmente não sabe como terminar.
A luta final é decepcionante, a “grande revelação” é confusa e tem zero impacto na história e o complô dos vilões é injustificável. Isso tudo é extremamente frustrante quando você tem um personagem tão carismático quanto Basim. Ele está longe de ser um Ezio Auditore, mas ele certamente é uma evolução satisfatória de Eivor, o viking do game anterior. Não descarto a possibilidade de Basim voltar em mais um título ou em uma eventual DLC mas é um potencial narrativo muito desperdiçado quando o game tenta focar tanto na história do personagem.
As personagens secundárias também são muito mal-aproveitadas. A mestra de Basim, por exemplo, tem trocas de diálogo muito impactantes com o personagem, mas é jogada para escanteio em boa parte da trama. Da mesma forma, o aspecto do credo e dos dogmas dos Assassinos é explorado em vários momentos, mas nunca é levado a fundo.
Em termos de narrativa, o único aspecto que se salva em Mirage é as tramas envolvendo os alvos de Basim. Todas elas são bem elaboradas e o sistema de investigação que guia Basim até os membros da Ordem dos Anciões consegue envolver o jogador na atmosfera do período histórico.
E falando em História (com “H” maiúsculo mesmo), apesar de não ter um Discovery Tour Mode – que proporciona uma interaćão educativa com o jogo para conhecer mais fatos históricos da região abordada no game – o guia de Assassin’s Creed Mirage é muito completo e fornece informações muito úteis sobre diversos aspectos da Bagdá do século IX. Esses dados são coletados na forma de orbes interativos posicionados em locais-chave da região e, mesmo sabendo que ninguém joga Assassin’s Creed pelo contexto histórico, mas é uma adição interessante com imagens de artefatos antigos que pode atiçar a curiosidade de alguns jogadores que desejam ir além dos visuais e dos locais recriados com maestria pela equipe de desenvolvimento da Ubisoft.
Um diamante bruto
Em termos de jogabilidade, Mirage sabe combinar muito bem os elementos de RPG que remodelaram a franquia a partir de Origins e também os aspectos mais clássicos desde os tempos que Ezio corria pela Itália cortando as gargantas de seus alvos.
Primeiro, a árvore de habilidades está mais simplificada com apenas 3 categorias diferentes. Armas e trajes podem ser melhorados até duas vezes e existe um sistema de atributos diferenciado para seus equipamentos especiais que permite criar diferentes estratégias para o combate. Por exemplo, você pode customizar suas bombas de fumaça para criar uma fumaça que além de cegar os inimigos pode curar Basim ao andar por ela, ou uma nuvem venenosa que deixa seus inimigos atordoados depois de se dissipar.
Além disso, o combate retornou aos moldes dos games clássicos, mas com um toque mais aprimorado. Basim pode bloquear ataques simples e um bloqueio perfeito lhe dá a chance de matar seu inimigo em apenas um golpe. Inimigos ágeis ou com armadura exigem estratégias diferentes para abater, mas o mais importante é que o jogo estimula você a sempre optar por uma abordagem mais furtiva e evitar o combate a céu aberto.
Basim pode se misturar à multidão, se esconder em cantos ou usar a plantação alta para passar despercebido por seus inimigos e chegar até seus alvos. Se você utilizar a estratégia correta e o ambiente a seu favor, é possível se livrar de toda uma guarnição em um forte sem disparar um único alarme. E permanecer incógnito é de suma importância em Mirage, já que o sistema de notoriedade retorna e para manter os guardas longe você vai precisar arrancar alguns posteres e até subornar arautos.
Felizmente aproveitar todos esses recursos que Basim e o jogador tem a sua disposição é muito fácil, prático e responsivo porque na primeira versão do game (disponível para essa análise e jogado no PS5), o título apresentou quase nenhum bug. Ter investindo em um game mais curto (a campanha principal pode ser concluída em cerca de 20 horas) e com um escopo menor, certamente compensou em criar um game mais tecnicamente polido e que proporciona uma das movimentações via parkour mais realistas que já pude ver na série, desde Unity.
Perdido nas areias do deserto
Assassin’s Creed Mirage cumpre a promessa feita pela Ubisoft em criar uma experiência mais compacta, polida e que se aproxime dos títulos clássicos da série. Infelizmente, tal objetivo parece ter sido atingido às custas da narrativa e desenvolvimento do personagem. Aqui temos um diamante bruto de quase 300 reais que poderia ter sido lapidado com mais cuidado para proporcionar uma aventura mais completa com todos os elementos mais importantes que consolidaram Assassin’s Creed como uma das franquias mais longas e de mais rentáveis do mundo dos games.
Sou um amante de ciência, livros e games desde que ganhei meu primeiro videogame e pude ler meu primeiro livro completo. Tenho mestrado em Ciência da Computação pela UFRGS, atualmente trabalho com pesquisa e estou realizando meu doutorado na Unisinos. Também publico muitos dos meus textos em formato de vídeo no meu canal profissional Sagitta Tech.