Análises
Análise | Persona 5 Royal – e a crítica à contemporaneidade
Desenvolvido pela Atlus e lançado para PS4 em março de 2020, Persona 5 Royal é a versão expandida do aclamado JRPG Persona 5 (PS3 e PS4).
Desenvolvido pela Atlus e lançado para PS4 em março de 2020, Persona 5 Royal é a versão expandida do aclamado JRPG Persona 5 (PS3 e PS4) — lançado em 2017 e vencedor do TGA 2017 na categoria melhor RPG. A própria chegada de Persona 5 foi um salto gigantesco para a franquia, que já demonstrava potencial no ocidente com Persona 4 Golden (PSVITA e PC). Tendo isso em mente, percebe-se que Persona 5 Royal não é um jogo completamente novo, mas uma versão de Persona 5 com mais conteúdo. Esse tipo de lançamento já é frequente da Atlus, que lançou versões expandidas de Persona 3 (PS2) e Persona 4 (PS2) também, resultando nos extremamente recomendados Persona 3: FES (PS2), Persona 3: Portable (PSP) e Persona 4: Golden (PSVITA e PC). E agora, com o lançamento do spin-off Persona 5 Strikers (PS4, Nintendo Switch e Windows), temos um motivo a mais para recapitular a saga Persona.
Uma história estendida
Retornar para a história de Persona 5 é sempre um prazer. E com novos lapsos, novos rumos, o enredo de Persona 5 Royal consegue aprofundar ainda mais a narrativa. Resumidamente, nos é apresentada a história de um estudante japonês — que posteriormente recebe o apelido de Joker — , um jovem do ensino médio transferido para Tóquio após ter seu registro criminal sujo injustamente. O protagonista passa a viver no sótão do café Le Blanc, pertencente a Sojiro Sakura, um amigo de sua família. No novo colégio, onde todos já sabem do seu passado “criminal”, conhece Ryuji Sakamoto e Ann Takamaki, e juntos descobrem um aplicativo chamado metaverse, que projeta a cognição de um indivíduo na forma de uma estrutura física (palácio).
Entrando sem querer no palácio do professor de educação física — que abusa de seus alunos — , eles utilizam esse meio para “roubar seu coração”, forçando Kamoshida a confessar seus crimes. Formando uma aliança com um gato chamado Morgana, o grupo Phantom Thieves se forma aos poucos, alvejando corações de personalidades cada vez maiores — que se desenvolvem na exploração de novos membros da equipe — , ganhando atenção da mídia enquanto buscam realizar uma reforma social.
Após esse resumo bem conciso, é válido afirmar que a história é extensa e muito detalhada. Tanto que o jogo começa pelo meio — e só depois nos leva de volta ao começo —, recapitulando os acontecimentos. E ao longo disso, nós lemos — e muito — milhares de linhas de diálogo. Peça por peça, ao longo de mais de 120 horas de jogo, vamos analisando o desenvolvimento da trama e percebendo o quão subjetiva e debatível é a narrativa. Com os novos personagens, é possível ter uma visão ainda mais ampla sobre o enredo, levando em conta que eles contribuem de forma transformadora para a narrativa, que se desenvolve em um ritmo arrastado, repleto de diálogos e reviravoltas. Sem falar nas novas cutscenes em anime, que são breves, mas ilustram belos momentos.
Quanto à interpretação da história, num primeiro momento é possível perceber que tudo se fundamenta no estigma social do Japão, representado na rejeição que Joker sofre por causa de seu antecedente. Não apenas isso, mas cada personagem tem um passado problemático e revela sua frustração diante da necessidade de não ser julgado por tais ocorrências. É possível dizer que toda a relação com os confidants se desenvolve a partir disso, nos aproximando da outra base que Persona 5 Royal utiliza, que é a psicologia.
A trama se desenrola na representação psicológica dos personagens. Os inimigos são retratados através de seus palácios, que ilustram o lado autoritário e corrupto, enquanto os Phantom Thieves são representados por seus personas, que se libertam após entrarem em um estado de revolta, e são caracterizados como anti-heróis. Para esclarecer, personas são monstros que invocamos nas batalhas, inspirados em seres mitológicos — com um design peculiar —, mas que representam uma personalidade. O termo Persona vem da teoria do psicanalista Carl Jung, que via as ‘máscaras’ (personas) como as diferentes personalidades que assumimos diariamente. Quem jogou os títulos anteriores já está familiarizado com essa fundamentação, porém, em Persona 5 Royal, isso se torna mais atraente por ser exemplificado através da cognição. E ao projetar a cognição dos inimigos em um palácio no qual eles são reis, a trama faz uma crítica contundente ao abuso de mafiosos, empresários, políticos, entre outros.
A questão política é bastante presente, mas se desenvolve nas sombras da trama, revelando o discurso banal de “uma nova política, diferente de tudo, que salvará o país” — o mais barato populismo que antes era visto como uma ameaça, mas atualmente é uma realidade. Consequentemente, a crítica se torna concreta quando analisamos como esse tema se desenvolveu na própria política mundial, e é possível perceber claramente essas semelhanças quando Persona 5 Royal incorpora os meios de comunicação de massa, assim como a opinião pública e o senso comum. Durante grande parte da história, acompanhamos o que a internet e as mídias convencionais pensam sobre os Phantom Thieves e suas atividades, e isso levanta um debate ético sobre o que é justiça. Quão correta é a justiça dos Phantom Thieves? Ou a justiça do estado? Para quem é destinada essa justiça? Esse tema permeia e é analisado de vários ângulos, delimitando claramente a visão oriental sobre o tema em comparação à ocidental. Muitas abordagens sobre essas questões podem ser encontradas sutilmente nas falas dos professores durante as aulas do jogo.
Mas como todos esses elementos se conectam? Acredito que, nesse ponto, tenhamos que voltar às bases dos pensamentos que moldaram o oriente. Um dos pensadores foi o chinês Confúcio, que em sua teoria ética carregava a culpa como motor da moral — a vergonha e a exposição. Além dessa corrente de pensamento, podemos trazer o zen-budismo para o debate também. Sendo uma das principais religiões do Japão, sabemos que sua prática tem como objetivo o fim do sofrimento através da calma e da meditação. No entanto, uma das grandes críticas ocidentais ao budismo é de que sua doutrina almeja uma “fuga da realidade” — uma visão errônea, é verdade. Conforme a trama progride, fica evidente que essas características refletem o convívio social, e os rumos da sociedade são liderados por uma opinião pública prisioneira de suas culpas e frustrações, que se transformam em estigma social, retornando ao princípio da trama. Fica claro que isso não é uma crítica só ao mundo do jogo, mas também ao mundo que conhecemos, sabendo-se da relação entre política e mídia de massa exemplificada na realidade — são temas do nosso tempo.
Por fim, conclui-se que a trama de Persona 5 Royal é muito mais do que uma história fantasiosa de um RPG japonês. Muito pelo contrário, tudo se desenrola nisso que parece ser um retrato de uma geração de jovens que ganharam a noção de libertação e que, num plano anárquico, vão em busca de justiça e reforma social. Apesar do tom “animado” que a franquia Persona ganhou nos últimos anos, o background de cada personagem pesa muito na maioria dos casos, proporcionando uma carga dramática forte — quando não catastrófica. O lado bom é que a história se estende e apresenta novos panoramas para sua compreensão total, mesmo que processada de forma desoladora e sombria, embasada criativamente em aspectos sociais e psicológicos.
A jogabilidade de Persona 5 Royal conta com novos recursos
Dado o contexto, Persona 5 Royal é um JRPG que mescla elementos de visual novel com batalhas por turno que envolvem a captura de monstros — os personas. Ele se divide da seguinte forma: seguimos o calendário numa rotina de ir ao colégio, e cada dia passa pela manhã, tarde e noite, sendo os dois últimos períodos — em dias de semana — livres para interagir socialmente e fazer diferentes tarefas. Em determinados momentos da história, somos levados a algum palácio onde exploramos, enfrentamos batalhas e temos um número de dias para completar. Entre essas semanas, podemos exercer diversas tarefas como ir ao cinema, trabalhar, jogar, ler, estudar, relacionar-se com os personagens, visitar locais etc. Essas atividades têm como fim aumentar nosso status social, composto em cinco categorias (Knowledge, Guts, Proficiency, Kindness e Charm), além de aumentar nosso nível com os confidants — personagens com os quais saímos e que, no avanço da relação, fornecem habilidades e benefícios no campo de batalha.
Visto que essa estrutura é a base da franquia Persona, darei atenção às novidades, como atividades, personagens, áreas exclusivas, além de novos aspectos nas lutas e exploração dos palácios. Para começar, uma nova cidade está disponível, a Kichijoji, onde podemos jogar dardos, sinuca, meditar, frequentar um bar de jazz, além de comprar novos produtos nas lojinhas — como o incenso, que pode ser utilizado na fusão de personas. A ambientação de Kichijoji traz um novo ar ao transitarmos, apresentando becos estreitos cheios de bares, um templo para meditação e uma coloração acinzentada, que ganha alguma vida pelas placas neon dos estabelecimentos. Os jogos de dardos e sinuca dão benefícios ao jogador, como na função “Baton Pass”, uma nova mecânica onde podemos passar a vez para outro personagem durante as lutas, aumentando dano e recuperando vida e stamina.
Quanto aos novos confidants, além de podermos nos relacionar com Goro Akechi, contamos com mais dois novos personagens: Takuto Maruki e Kasumi Yoshizawa. Começando com Maruki, ele é o psicólogo da escola, com o qual consultamos e temos conversas profundas que esclarecem parte do embasamento psicológico ficcional utilizado no jogo. Esse confidant nos permite acesso a duas habilidades automáticas: o flow, que aumenta a concentração, e o mindfulness, que recupera stamina — o flow, como conceito, seria a sensação do tempo passando quando se está focado, já o mindfulness é um exercício de atenção plena, derivado da meditação e utilizado na psicologia.
Prosseguindo em relação aos novos personagens, temos a Kasumi, nova estudante da Shujin Academy e que pode ser encontrada em Kichijoji — assim como Akechi. Sua aparição é ambígua, e mesmo avançando no relacionamento, ela se mantém uma incógnita durante boa parte do jogo, apesar de simpática. Junto com esse conteúdo novo, agora temos novos Personas e mais um semestre de aulas, permitindo que se aproveite mais o conteúdo extra. O gato Morgana também não incomoda tanto quanto no primeiro jogo para não sairmos à noite.
Em relação aos combates, no Mementos temos um novo personagem chamado Jose, que aparece esporadicamente e vende itens em troca das flores que coletamos no local. Através dele, também podemos alterar a cognição do Mementos, permitindo ganhar mais experiência, dinheiro ou itens. Nos palácios, temos um novo, que é liberado conforme seguimos a rota para o true ending. Dentro deles, podemos escalar locais com um gancho de escalada, que permite acesso às salas que contêm Will Seeds — são três itens especiais que encontramos em cada palácio e, ao serem coletados, se transformam em acessórios. Os palácios apresentam mudança no level design por conta dessas adições, mas nada que extrapole. Além disso, uma espécie de showtime em dupla está disponível durante as batalhas, com animações cômicas entre alguns personagens da equipe.
Fora do jogo, e mais precisamente no menu, encontramos a opção do Thieves Den, que é tipo uma exposição de arte onde personalizamos e expomos objetos relacionados às aventuras durante o jogo — como uma estátua de algum chefão ou algo do tipo. Só construímos isso graças a algumas moedas especiais que ganhamos no decorrer do gameplay. Essa parte funciona mais como um bônus mesmo.
Todo esse conteúdo renova um sistema de jogo dinâmico que mostrou ser uma grande evolução em relação aos jogos anteriores da franquia. Agora os palácios, até mesmo os mais chatos, carregam um motivo a mais para serem investigados a fundo, agregando muito em novas mecânicas. A dificuldade, na minha impressão, parece menor do que a de Persona 5, e até alguns inimigos, como o Reaper, parecem mais acessíveis. Já nas atividades cotidianas, vale destacar a diversão proporcionada pelos dardos — que fazem uso dos sensores do Dualshock 4 — , e a relação com os personagens novos, que além de cativarem no jogo, proporcionam uma base para a ciência cognitiva que ronda a trama de Persona.
Precisamente, as novas adições em Persona 5 Royal proporcionam uma completude para a experiência, diversificando até o Mementos, que antes era apenas um longo corredor com tesouros e missões. O mesmo vale para o tempo otimizado, que nos permite percorrer o vasto teor de atividades com mais calma. É necessário afirmar como a agilidade no ritmo dos palácios entra em equilíbrio com a rotina, onde passamos mais tempo lendo diálogos do que enfrentando mecânicas mais complexas do jogo — como os enigmas e as estratégias. O equilíbrio no ritmo e a vastidão de conteúdo permitem que Persona 5 Royal tenha uma interação ainda mais aprimorada do que sua primeira versão — que já parecia impecável.
A perfeição em forma de trilha sonora
No quesito sonoro, a trilha sonora de Persona 5 Royal nos presenteia com verdadeiras obras-primas do gênero acid jazz. Tudo é produzido com muito estilo e bom gosto, fazendo com que as próprias músicas se tornem uma obra à parte muitas vezes. As orquestras, os arranjos, todos conversam e têm uma identidade própria do compositor Shoji Meguro, mas se misturam bem com os diferentes ritmos das faixas. Por exemplo, as músicas mais suaves, que acompanham os momentos mais calmos do jogo, marcam de forma arrebatadora — parecem até caminhar ao lado da chuva e das noites iluminadas de Tokyo.
Já as mais intensas e distorcidas também têm seu impacto, principalmente quando entramos em algum desafio e a atmosfera muda. Mesmo nessas faixas, é perceptível como os elementos se alternam, combinando bem guitarras cheias de overdrive com violinos sensíveis e pontuais, e às vezes um piano ou um órgão, que parecem flutuar, sempre adicionando mais camadas. Isso também se aplica às faixas exclusivas de Persona 5 Royal, que captam bem a ideia de trilha sonora e contribuem para uma contextualização mais alegre e instigante. Vale ressaltar que podemos ter acesso às músicas de combate de Persona 3, Persona 4 e Catherine através do uso de trajes.
Por fim, Persona 5 Royal só comprova que sua sonoridade já é clássica e remete aos melhores trabalhos sonoros da geração passada de consoles. As novas faixas captam bem o espírito do jogo e surpreendem muito na imersão proporcionada na reta final. Algumas novas vozes da dublagem japonesa também deram vida a cenas específicas que antes não contavam com vozes.
Um visual criativo com pura consciência estética
Outro ponto de destaque — como se já não fossem muitos — é o visual de Persona 5 Royal. Enquanto o jogo possui um estilo de anime, seus gráficos incorporam uma espécie de cel-shading e estão levemente aprimorados aqui, com algumas texturas corrigidas e polidas. Apesar de Persona 5 Royal não ser o tipo de jogo que precise de gráficos esplendorosos, já que a ambientação, tanto da cidade quanto dos palácios, é artisticamente caprichada. O nível artístico é altíssimo mesmo, e a influência de diferentes movimentos estéticos fica bem representada tanto nos menus quanto nas telas de finalização.
O design focado nas cores vermelhas nos transporta para uma experiência estética reconfortante, que combina muito bem com outros elementos, como a sonoridade e a jogabilidade. Tudo converge para um estado de espírito onde a única vontade possível é ir para um café em Tokyo ouvir jazz. Mesmo nessa vibe relaxante, é bom saber que os palácios beiram o bizarro visualmente. Assim como os monstros que sempre tiveram designs extravagantes. Sendo assim, tanto o visual artístico quanto a qualidade gráfica desempenham seu papel no sentido mais puro da palavra estética, provocando uma gama de sensações.
Considerações Finais
Persona 5 Royal é a prova de que aquilo que já é bom pode ser ainda melhor. E a saga que percorremos introduz um sentimento de autenticidade decorrente da própria qualidade de seus aspectos, que juntos formam um jogo harmonioso. A história, a narrativa e os personagens permitem uma aproximação que não depende apenas de um protagonista sem falas, pois somos nós, jogadores, que atribuímos um sentido a todos os casos abordados. Em sua longa duração, somos agregados a uma série de questionamentos que ultrapassam a barreira da própria ficção. É uma relação entre obra e jogador que surge, porque nós vivemos e sentimos tudo aquilo. Isso se desenvolve nos dias que preenchemos com tarefas, nas batalhas que requerem um pensamento lógico aprimorado e no ambiente que nos envolve nas multidões do Japão, e que mesmo assim nos permite espaço para a contemplação estética.
Jornalista, especialista em Metafísica e Epistemologia (UFCA) e Filosofia e Autoconhecimento (PUCRS). Sou apaixonado por cinema, filosofia, música e literatura. Confluo essas áreas na escrita das minhas críticas.