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Videogames e a Pic@ das Galáxias
Vistos como brinquedos infantis, os videogames não parecem tão difíceis de criar. Contudo, ir para o espaço pode ser uma opção mais fácil.
“ Uma vez eu tomei umas com um desenvolvedor que acabara de enviar um novo jogo. Parecia exausto. Ele e sua equipe estavam bem perto do gol, contou, quando foram atingidos por uma revelação: um dos maiores recursos do jogo não era realmente divertido. A equipe de desenvolvedores teve que passar os próximos meses “processando”, trabalhando de oitenta a cem horas por semana para fragmentar o recurso e revisar tudo o que haviam feito até aquele ponto. Alguns dormiram no escritório para que não tivessem de perder tempo no deslocamento, porque cada hora passada no carro era uma hora em que não estavam consertando erros. Até o dia em que tiveram de enviar a versão final, muitos duvidaram que pudessem lançar o jogo.
— Parece até um milagre que esse jogo foi sequer terminado — comentei.
— Oh, Jason — ele disse. — É um milagre que qualquer jogo seja terminado. “
(Sangue, Suor e Pixels – Jason Schreier, 2017)
Embora este diálogo relatado acima possa parecer um tanto romantizado, qualquer um que já tenha trabalhado – ou tido contato com alguém que trabalhou – na indústria de desenvolvimento de videogames provavelmente conhece histórias semelhantes.
O fato é que, apesar de centenas e mais centenas de jogos serem lançados mês a mês nas mais diversas lojas físicas e digitais em todo o mundo, muitos desenvolvedores também têm cada vez mais compartilhado abertamente os percalços – se não abusos e excessos – da indústria. Sem contar os inúmeros exemplos de grandes promessas que acabaram por revelar grandes fracassos no fim. Desde as maiores produtoras do mundo como a EA com Anthem, ou a CD Projekt RED com Cyberpunk 2077 até pequenos estúdios independentes como a Hello Games com No Man’s Sky. Ninguém é capaz de determinar se um game será um sucesso ou não.
Afinal, não existem métricas para o que é divertido. Um jogo pode tomar formas das mais diversas, suas tecnologias avançam a saltos largos, e tão rápido quanto ela mudam também os interesses do público. O que é divertido para um, pode não ser para outro, ou pode se tornar ultrapassado rapidamente, ou até mesmo acabar passando despercebido em meio tanta competição. Curiosamente, esses problemas existem desde os primeiros anos da indústria.
E os videogames quase ‘foram pro espaço’
No início dos anos 80 viu-se uma grande decadência na indústria que quase faliu as principais desenvolvedoras do mercado, o chamado “crash dos videogames” – não confundir com o personagem Crash Bandicoot dos videogames. O fato se deu por uma quantidade massiva de jogos parecidos e de baixíssima qualidade. Basicamente muitas empresas quiseram pegar o bonde andando e aproveitar o recente sucesso da mídia atrás de um suposto dinheiro fácil. Não fosse a intervenção da, hoje gigante, Nintendo com Donkey Kong – que introduziu, dentre outras coisas, um enredo com começo, meio e fim – e a chegada do Nintendo Entertainment System (NES) com Super Mario Bros., as chances de que o desenvolvimento de games fosse abandonado e considerado inviável teriam sido muito grandes.
Já em 91 grandes avanços começaram a ser feitos para que os videogames entrassem no universo 3D. A esse feito, é fácil atribuir todo crédito a John Romero e John Carmack, fundadores da id Software. Carmack, especialmente, foi o programador responsável por criar a engine (o motor por trás do jogo) que daria vida a jogos como Wolfenstein 3D, Doom e Quake. Futuramente essa mesma engine seria usada para criar jogos como Half Life e Medal of Honor.
Alguns anos depois, Carmack decidiria fazer algo além do desenvolvimento de games – entrar para o ramo aeroespacial. Nos anos 2000 fundou a Armadillo Aerospace e em 2008 venceu a primeira etapa do Northrop Grumman Lunar Lander Challenge. O desafio era fazer um foguete decolar, ascender 50 metros, permanecer no ar por 90 segundos e aterrissar precisamente num local designado a 50 metros de distância. Então, o processo reverso deveria ser feito – tudo isso dentro de duas horas e meia. Ao aceitar o seu prêmio de 350 mil dólares na sede da NASA, John fez um discurso interessante:
Em 2015, um fã o questionou no Twitter sobre tal declaração e ele elaborou:
Teoria e prática
O que podemos entender, basicamente, é que há muito mais estudos e pesquisas que precedem a engenharia espacial, além de muito mais pessoas contribuindo para o campo. Por se tratar de matemática, física, engenharia e outros elementos exatos, é mais simples preparar toda a teoria necessária para fazer com que um foguete opere. A complexidade se encontra na prática pelos fatores externos inesperados – o clima e o vento, por exemplo – além de questões legais, obtenção de materiais, dentre outros. Por isso, empresas privadas de grandes bilionários, que com seu dinheiro conseguem trabalhar esses fatores de forma mais controlada, estão na vanguarda da engenharia espacial atualmente.
Em contrapartida, enquanto a prototipagem e testagem de videogames seja muito mais fácil – por se tratar de um ambiente virtual e com tecnologias que permitem a testagem de recursos em tempo real – fatores como diversão, imersão, interesse do público e competitividade no mercado são muito mais difíceis de se prever – além de, por ser uma indústria ainda muito recente, há relativamente pouco material de estudo disponível. Outro fator de dificuldade é que, como nos anos 80 houve o problema de muitos jogos parecidos, o medo de que “sua ideia seria roubada” se tornou constante entre estúdios de desenvolvimento de jogos. Até hoje seus projetos são muito sigilosos, envoltos em contratos que impedem funcionários de compartilhar informações e conhecimento abertamente. É notável o contraste na quantidade de “por trás das cenas” existente no cinema e nos games, por exemplo.
Em 1993 Aleksandr Serebrov se tornou o primeiro homem a jogar videogame no espaço, com seu Game Boy e um cartucho de Tetris. Já em 2012 a EA literalmente lançou um jogo da franquia de ficção científica Mass Effect no espaço antes de seu lançamento no mercado – o sortudo que o encontrasse após aterrissar ficaria com ele. Ainda assim, não somos capazes de prever com precisão quais práticas tornam um game bem sucedido.
Existem teorias sobre o que deixa um jogo mais prazeroso de se jogar, o “Game Feel”, sobre o equilíbrio do desafio entre o desafio proposto com a habilidade em superá-lo que cria o “Estado de Flow” onde o jogador se esquece do mundo ao redor, sobre boas práticas nos ramos da arte, programação, música… Porém, simplesmente jogar esses ingredientes numa panela e aquecer até borbulhar não garante que o resultado final será saboroso ou sequer atrativo.
Em seu livro ‘Half Real’, Jesper Juul afirma: “Eu acredito que no fim das contas não há nenhuma sentença única que descreva o que torna os jogos divertidos; diferentes jogos enfatizam diferentes tipos de prazeres e diferentes jogadores podem até apreciar o mesmo jogo por razões inteiramente diferentes.”
Já Raph Koster, em seu célebre ‘A Theory of Fun’, diz: “Diversão se trata de nossos cérebros se sentirem bem – a liberação de endorfinas no nosso sistema. […] A ciência mostrou que os prazerosos arrepios que temos em nossa espinha após uma música excepcionalmente poderosa ou um livro muito bom são causados pela mesma química que recebemos quando usamos cocaína, temos um orgasmo ou comemos chocolate. […] Uma das liberações de químicas que ativam boas sensações é no momento de triunfo quando aprendemos algo ou dominamos uma tarefa. […] Existem muitas formas pelas quais encontramos diversão nos games […]. Mas aprender é a forma que eu acredito ser a mais importante. […] Em outras palavras, nos games, aprender é a droga.”
Contudo, Ian Bogost contrapõe em ‘How to Talk About Videogames’: “Nós pensamos que [videogames] são eletrodomésticos, meras ferramentas que existem para entreter e distrair. Nós pensamos que suas habilidades de satisfazer nossa necessidade por lazer são sua única função. […] Se videogames só existissem para injetar o maior prazer pelo menor custo por unidade, eles apenas seriam narcóticos ineficientes e nada intuitivos.”
Dinheiro no bolso
Então já sabemos que os conhecimentos teóricos e boas práticas do desenvolvimento de videogames são não só esparsos, como também ainda debatidos entre criadores, pesquisadores e críticos. Ainda assim, inúmeros casos de sucesso continuam a surgir dos anos 90 até hoje.
Estima-se que até 2023 a indústria movimentará mais de 200 bilhões de dólares globalmente, sendo uma das poucas que mesmo durante a pandemia continuou em expansão. Comparativamente, apenas em 2019 a indústria do cinema conseguiu ultrapassar a marca de 100 bilhões de dólares.
Seria o dinheiro, então, o ingrediente secreto? Afinal a Sony, detentora da marca Playstation, sempre lança grandes sucessos como God of War e The Last of Us e conquista diversos prêmios de jogo do ano e permanece, em 2021, sendo a maior companhia de games do mercado em termos de receita. Sozinha a empresa lucrou 25 bilhões de dólares em 2020. Que tal perguntarmos ao homem mais rico do mundo?
Desde 2017 Jeff Bezos tem sido considerado pela Forbes como o homem mais rico do mundo, sendo o primeiro cuja fortuna ultrapassou a marca de 200 bilhões de dólares desde que a revista começou a monitorar esses dados em 82. A Amazon, seu principal negócio, é referência global no setor de varejo e entrega, com braços no streaming de filmes, séries, música e também de games com a plataforma Twitch e a nova Luna – uma rival para o Google Stadia e o Xbox Cloud Gaming – também se aventura há anos no desenvolvimento de videogames.
A Amazon Games, fundada em 2012 como Amazon Game Studios, possui grandes ambições. Logo de cara contratou profissionais que trabalharam em franquias como EverQuest, Portal, Far Cry e System Shock, e determinou que lançaria cada um dos seus jogos deveria se tornar uma franquia de bilhões de dólares, além de que tudo seria feito com uma engine autoral – criada por eles mesmos – a Amazon Lumberyard. Há relatos de que a Amazon investe 500 milhões de dólares anualmente em seu estúdio de games – o valor pode parecer alto, mas vale lembrar que a companhia lucra isso a cada 12 horas, aproximadamente.
Desde então o estúdio lançaria dois fracassos que seriam até mesmo retirados das lojas, cancelou ao menos cinco projetos conhecidos – e vários outros que não chegaram a ser anunciados, segundo fontes – e perdeu muitos de seus funcionários. Seu lançamento mais recente, New World – atualmente em estágio Beta (ainda não finalizado) – recebeu grande interesse do público, porém também passou e ainda passa por diversos percalços.
As crises na Amazon Games
“A Amazon levou apenas cinco anos após lançar um estúdio de TV para ganhar seu primeiro Emmy. Mas quase nove anos desde a inauguração de sua divisão de videogames, a Amazon não só não conseguiu receber nenhum prêmio por um game, como também está tendo dificuldades em sequer produzir jogo algum.” destacou Adam Epstein na Quartz.
Inúmeras outras publicações foram atrás de respostas. Sites como Bloomberg, Wired e The Guardian entrevistaram diversos funcionários e ex-funcionários do estúdio e um tema foi especialmente recorrente: gerência.
“[Jennifer] Salke era presidente da NBC Entertainment antes de entrar para a Amazon dois anos atrás. Seu chefe, Mike Hopkins, que veio para a Amazon em Fevereiro, anteriormente era chefe executivo na Hulu e chairman da Sony Pictures Television. [Mike] Frazzini, enquanto isso, não possuía nenhuma experiência significativa na indústria de games antes de trabalhar na Amazon.” reporta o site Protocol ao comparar o tratamento recebido pelas divisões de filmes e de videogames na Amazon.
Mike Frazzini trabalhava há anos na Amazon quando ajudou a criar o então Amazon Game Studios e passou a atuar como vice-presidente deste. Sua experiência como executivo e inexperiência como desenvolvedor de jogos causou muito atrito entre os grandes talentos contratados pelo estúdio. Ignorar conselhos, ter visões e aspirações megalomaníacas, mudar rápida e constantemente o foco dos projetos a fim de correr atrás das tendências do momento (leia-se estava lucrando mais), forçar práticas que afetavam a produtividade (como a criação e uso da engine Lumberyard) são apenas alguns do muitos relatos colhidos pelas publicações citadas.
“Executivos sob Frazzini inicialmente rejeitaram acusações de que New World, um jogo da Amazon que levaria os jogadores a colonizar uma terra mítica e assassinar habitantes com uma semelhança impressionante a Nativos Americanos, era racista. Eles cederam após a Amazon contratar um consultor tribal que considerou que o retrato era, de fato, ofensivo.” conta Jason Schreier numa extensa reportagem ao Bloomberg.
Quanto a New World, o jogo estava planejado para Maio de 2020. Depois Agosto. Depois 2021. Cá estamos nós uma semana após o lançamento do game ainda em estágio de testes para o público. As expectativas, ainda assim, continuaram grandes e positivas por parte do público. Contudo, mesmo sendo um MMO (jogo online de mundo compartilhado para quantidades massivas de jogadores simultâneos), e se utilizando dos poderosos servidores da Amazon, o game ainda não tem condições de acomodar todos os jogadores. Em seu dia de lançamento, mais de 5 mil pessoas se encontraram numa longa e demorada fila de espera para ter acesso ao game, além de diversas outras ocorrências como dificuldades em completar missões, travamentos completos e até relatos de placas de vídeo superaquecendo.
Em contrapartida, diversos estúdios independentes com poucos recursos e funcionários continuam a lançar obras aclamadas pela crítica e público – com concorrentes a Jogo do Ano figurando nos últimos The Game Awards, como Hades e Celeste. Com escopos mais realistas, os jogos Indie, que outrora serviam para ocupar o vazio entre as grandes produções, agora tem tido seu merecido protagonismo. Em especial durante o tempo de pandemia, que atrasou inúmeros grandes projetos de estúdios que reuniam milhares de funcionários em grandes escritórios e prédios, os produtores independentes já habituados com home office e com menos dependências externas tiveram espaço de sobra em 2021.
Nem receita de bolo, nem métricas matemáticas, nem dinheiro. Ao que tudo indica, o que mais aumenta suas chances de sucesso ao lançar um jogo é… Lançar jogos. É o clássico paradoxo do “procura-se estagiário com experiência”. Criar jogos para criar jogos melhores. Toxicidade, sexismo, cargas horárias excessivas e várias outras práticas negativas comuns na indústria cada vez mais (obviamente) se mostram grandes inimigos do sucesso. Ao mesmo tempo, abraçar a criatividade, ouvir diferentes opiniões, envolver e conhecer as múltiplas áreas que permeiam o desenvolvimento de games são fatores positivos.
A alternativa, claro, pode ser desistir completamente, entrar num foguete de formato fálico e sair de órbita, como quem perde uma aposta. Afinal, Jeff Bezos passou alguns minutos a pouco mais de 100km de altura e retornou com sucesso à superfície da Terra algumas horas antes que New World tivesse seu Beta aberto para o público pela primeira vez. E ainda sequer podemos afirmar se este será um sucesso também.
I’m a believer
” […] como designer de jogos, você nunca pode criar diretamente o espaço possível de seu jogo. Você só pode construir indiretamente o espaço de possibilidades, por meio das regras que você projeta. O design de jogos é um ato de fé – nas suas regras, em seus jogadores, em seu próprio jogo. Seu jogo vai criar uma interação significativa (meaningful play)? Você nunca pode saber com certeza. Mas entender conceitos fundamentais – tais como design, sistemas e interatividade – pode ajudar a aproximá-lo de um resultado significativo
(Regras do Jogo, Katie Salen e Eric Zimmerman, 2004)
Por hora não somos capazes de destrinchar e entender os inúmeros milagres lançados mensalmente não para o espaço, mas para a indústria de videogames. A união de diversas pessoas de ramos diferentes – designers, artistas, programadores – que sequer costumam ter o salário que merecem e/ou precisam lidar com engravatados que não entendem nada do que fazem. Essa prática que mesmo sendo tão difícil quanto engenharia espacial já nos levou a conhecer incontáveis mundos e universos, a habitar muitas peles, viver inúmeras vidas. Que nos diverte, nos entretém, mas também nos fascinam, desafiam e envolvem.
Podemos não entender. Mas com certeza podemos apreciar a viagem, acreditar nos milagres, e valorizar nossos engenheiros do desconhecido.
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Formado em Design de Games pela Universidade Anhembi Morumbi e com mais de 5 anos de experiência como Motion Designer e Editor de Vídeo, já palestrou sobre GameDev e leva os joguinhos à sério por mais que sua mãe diga que não dá dinheiro (não dá)