Essa crítica faz parte da série de análises da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, festival anual que celebra o cinema mundial, trazendo centenas de filmes, entre clássicos e contemporâneos, todo mês de outubro. Eu, Matheus Maskalenka, apresento essas críticas como uma seleção do que mais me interessou e talvez interesse a vocês quando os filmes forem lançados em cinema ou streaming.
Pode parecer até meio bobo, mas não consigo deixar de sentir orgulho ao ver o nome de Ian SBF estampado na tela de um filme nacional de ficção científica distópica no meu evento favorito do ano. Sou seguidor desde as origens, devoto dos canais Anões em Chamas e Fondo Filmes, onde o diretor e seus colaboradores experimentavam diversos esquetes, formatos e estilos diferentes de humor. Nunca imaginaria que essa seria o berço da comédia contemporânea do Brasil, mas quando o Porta dos Fundos tornou-se a referência do gênero, não resta dúvidas quanto à importância de Ian no cenário nacional.
Então nada me deixa mais alegre do que ver seu primeiro longa se aventurando em um gênero totalmente a parte, como também tendo clara inspiração no meu filme favorito.
Em Ciclo, somos apresentados a um mundo onde o “novo normal” da pandemia nunca foi superado. Conforme a pandemia foi se alongando, a humanidade desenvolveu formas mais extremas de quarentena. Ambientes subterrâneos, onde grupos de pessoas vivem em “apartamentos”: bunkers com salas pressurizadas, onde nunca pode haver mais que uma pessoa por sala e os moradores precisam desempenhar funções monótonas pra ganhar créditos e comprar viveres básicos. (Você achou que as relações socio-econômicas iam abrandar?) e só podem se comunicar através de telefone. Na falta de luz solar, o mundo é organizado em “ciclos”, períodos de 2 horas no fim dos quais as salas são borrifadas com gases esterilizantes e os moradores precisam entrar em salas vedadas. Tudo isso sob a autoridade de um sistema de governo invisível, porém implacável, que muda as regras constantemente e gera medo nos habitantes a ponto de não precisar executar nenhuma ação para exercer controle.
Vemos o mundo pelos olhos de Antônio (Felipe Abib). Antônio é um terapeuta encarregado de dar apoio psicológico aos outros moradores, mas não nutre ilusões de que tem como realmente ajudar. Estão todos no mesmo barco, e a especialização dele só faz ele perceber a lenta deterioração da sanidade. Aí chega o botânico Diego (Daniel Furlan), que aparenta ter surtado totalmente. Mas numa situação tão caótica, é impossivel ter noção do que é “normal”.
A tensão, desconfiança e ambiente opressor dão todos os ingredientes de um ótimo thriller. Uma efetiva alegoria à pandemia de Coronavirus (da qual não estamos livres ainda), que representa, com um verniz cyberpunk, a ansiedade perante o caos e incerteza, somada à inação autoridade indiferente. Nisso, Ian SBF bebe da fonte de Brazil de Terry Gilliam, com sua distopia pós-moderna. Além dos bunkers sujos iluminados por luzes de neon são claramente inspirados pelo cenário urbano decadente do filme de 85, a atmosfera sufocante da burocracia que rege a vida dos cidadãos desumanizados, que vivem em função de sobreviver um sistema que os trata como engrenagens. Assim como em Brazil, há pequenos indícios de como é o mundo fora dos apartamentos, que faz o espectador especular como é o universo que não vemos, e as dificuldades de quem não conseguiu se “salvar” da situação. Chega a ser desesperador ver o quão fácil é aplicar aquela situação ao governo Bolsonaro.
Esses temas cairiam em risco de despencarem em si mesmos se não fosse o roteiro eficiente de Ian, que usa um recurso com má fama, a narração do protagonista, pra nos apresentar esse universo. É o tipo ficção científica mais focada em conceitos do que desenvolvimento de personagens. Isso não é um demérito, pois Antônio é um guia efetivo para nos imergir nessa situação fantástica, e os demais moradores são plenamente funcionais à trama. Com um roteiro tão bem estruturado, pode ser até frustrante o final não conclusivo do filme, que não responde satisfatoriamente as dúvidas, mas cuja ambiguidade não é exatamente instigante. Só fica uma sensação de… “E depois?”
Mesmo o final dando a sensação que o filme era menos um longa e mais um piloto de “Ciclo – A série”, isso não tira o sucesso dele em conseguir traduzir em arte os traumas do Brasil em tempo de pandemia. Ao criar uma situação absurda, o filme permite a começar a refletir a pandemia de uma distância segura. Conforme o tempo passar, e começarmos a ter mais noção do real impacto da pandemia, outros filmes como “Ciclo” virão, com conclusões e perspectivas diferentes.
Mas por enquanto, é bom saber que Ian SBF ainda tem muito a oferecer ao audiovisual brasileiro.