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O Dilema da Neutralidade

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O Dilema da Neutralidade

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Acredito que com o decorrer do tempo e, consequentemente com o meu amadurecimento na medida que a idade progride, passei a perceber e interpretar o mundo de formas diferentes. Afinal, isso é o conceito da maturidade em ação. Imagina que cafona permanecer com o mesmo pensamento e ideais que você tinha a 10 anos atrás. Mas na medida que os anos passaram, o conceito de neutralidade foi uma das coisas que nunca saiu da minha cabeça.

Talvez ter feito faculdade de História não tenha ajudado, afinal, fui ensinado e letrado a desconstruir e criticar os conceitos que circulam e moldam a nossa sociedade atual. Junto a isso, fui letrado na arte de interpretação dos eventos históricos, sejam eles pretéritos à nossa contemporaneidade, ou eventos que ocorrem no nosso presente plano.

Posto isso, acho que é fácil lembrá-los de que vivemos no mundo da informação, não? Mas isso não significa muito, visto que boa parte da população brasileira, mas não exclusivamente ela, não é letrada para esse volume de virtude que a internet nos dá. Somos bombardeados de ângulos, visões e interpretações sobre os acontecimentos presentes, todos os dias, com apenas um simples click nos nossos navegadores e celulares.

Mesmo assim, ainda podemos segurar nossos valores morais e éticos, e no final, muitos ainda podem se auto-declarar neutros e/ou negar as dinâmicas políticas de sua realidade. Nesse artigo, pretendo discutir um pouco sobre a minha visão no conceito de Neutralidade, usando como base um querido jogo do Ken Levine (o cara do Bioshock, sabe?), ao mesmo tempo que eu lanço umas críticas a esse jogo. Vamos lá?

Acho que é melhor irmos com calma agora

Vivemos em tempos difíceis. Mesmo após a crise de 2008, que possui repercussões até hoje nas economias em escala internacional, ainda nos deparamos com um mundo fragilizado, em especial, um mundo capitalista na qual demanda por uma reinvenção de seu sistema e fundamentos.

Lá pro início da década de 90, tivemos a queda do ”Segundo Mundo” com a desestruturação da União Soviética, e do restante das autocracias de ”esquerda” que dominavam a Europa Oriental. Com isso, muitos conclamaram a ”vitória” do modelo capitalista, e utilizaram isso de pretexto para legitimar o poder do mundo Ocidental e, em especial, a cultura liberal e seus promotores da Democracia, no caso, os Estados Unidos da América.

Robert Kurz. Ele deveria ser bem boa pinta, tem cara de ser mó suave.

A verdade é que o mundo não funciona de forma maniqueísta, pelo menos não é tão simples de se resumir desse jeito. A própria Guerra Fria foi um conflito sustentado nesses discursos, o ”bem” (mundo capitalista) contra o ”mal” (mundo comunista), e não se engane, o contrário também era lecionado e cultivado na realidade oposta.

Segure essa ideia por um momento, tudo bem? Vamos entrar aqui hoje com a estrela de nosso texto, e não, não é o Ken Levine. Estou falando de um cara chamado Robert Kurz. Robert Kurz foi muito de tudo, mas alguns chamam-o de filósofo moderno. Kurz era um marxista alemão, que viveu os eventos da Guerra Fria de forma bem intensa. Sua terra natal, Nuremberga, se encontrava na parte ocidental da Alemanha dividida. Sendo assim, Kurz foi ensinado e letrado pela educação e vertentes ocidentais de pensamento, adotando uma postura de reinterpretação do marxismo, na medida que desenrolava críticas ao mundo pós-moderno e os princípios do capitalismo e suas raízes nas nossas dinâmicas sócio-culturais.

Segundo Kurz, a pós-modernidade possui uma estrutura destinada a falência, e o fim do Segundo Mundo é a prova concreta para isso. Para Kurz, a queda do mundo socialista é um presságio para o começo do fim do mundo capitalista. Como e por que? Bem, esse não é o assunto do texto, muito menos meu objetivo aqui, então deixo essa missão para você descobrir (o texto para entendimento está linkado no nome logo acima).

Mas a decadência desse mundo capitalista, pode ser percebida na medida que as estruturações desse sistema acabam perdendo sua sustentação, abrindo espaço para que organizações e correntes extremistas ganhem força e domínio sob as sociedades. Consegue perceber os paralelos com a nossa contemporaneidade? Uma das coisas que entra exatamente em contraste com tudo isso, é o que os bons e velhos marxistas discutem em sua filosofia/pensamento: a luta de classes.

A luta de classes é um conceito que marca a corrente marxista de pensamento e interpretação do mundo, visto que enxerga os momentos da humanidade, através do embate dessas diferentes realidades sociais que coexistem num mesmo período histórico. Juízos de ordem social, cultural e econômico, são alguns dos itens que sustentam e catalizam as lutas de classe. E na medida que introduzimos o capitalismo na fórmula, nos depararemos com o conceito de materialismo na cultura do homem.

Caramba, escrevi bastante né? Ainda tem mais…

Kurz viveu a intensidade dos momentos finais do Muro de Berlim. O que influenciou profundamente suas obras.

A palavra materialismo ou ”cultura materialista” é gritado/a por muitos e muitas, que para alguns fez com que ela perdesse sentido e/ou força. A verdade é que estamos tão atrelados e enraizados sobre esse modus-operandi, que já se tornou algo tão natural e temos certa dificuldade de perceber, e claro, de se desligar dele.

Na ciência História, acabamos por nos sensibilizar em relação aos conceitos do materialismo e os próprios materiais em sí. Conseguimos perceber as ”intencionalidades” (falo bastante disso também no meu texto do Moonrider, confira!)por trás de suas confecções, sejam elas políticas ou não, elas ainda possuem um pequeno vestígio de ligação com a realidade de sua produção. E no fim ao caso, essa ligação tem alguma profunda, talvez não evidente, vinculação com as políticas de seu tempo.

Ser neutro é o que exatamente?

Livro de Kurz no qual baseio meus pensamentos para este texto.

Ok, eu sei que pode estar difícil, mas lembra daquele pensamento que eu falei pra tu segurar? Da treta de mundo capitalista e comunista? Então, vamos dizer que você é uma pessoa neutra em relação as políticas desse mundo dividido, um mundo no qual você só enxerga como ”preto e branco”, mas na realidade, o mundo é cercado por tons de cinza.

De forma evidente, ao assumirmos neutralidade em relação a uma situação, meio que… assumimos uma decisão/intenção, certo? Lembra que nossas intenções, mesmo não tendo fundamentos e pretextos políticos, acabam tendo de uma forma ou de outra, uma base política? Bem, talvez tomar uma decisão de caráter ”ausente” em relação a uma realidade, ajude a estimular e ou legitimar a posição de um ou vários indivíduos numa situação crítica de poder. Talvez você legitime a vitória do detentor de poder, e desqualifique/prejudique aquele que estava subjugado, entende o que eu quero dizer?

Como eu disse, o mundo não funciona de forma maniqueísta, e cabe ao ofício do historiador ou do intérprete, em tentar entender/desvendar os mistérios no qual esse mundo se opera. Conquanto, o ato de ser neutro em relação as situações que se operam na nossa realidade, fundamenta apenas pretextos que acabam tendo intenções, e no fim ao caso, sua imparcialidade pode sustentar o poder daquele que já é soberano.

Bioshock Infinite é um jogo… estranho

Ok, nós finalmente vamos falar de joguinhos agora, ihul. Acho que é válido comentar que eu não vou segurar a língua nesse artigo, então vários spoilers de Bioshock Infinite virão a seguir. Mas pô, quase todo mundo que olha esse site, jogou essa bagaça, né? Então, esteja avisado, se continuar lendo, vai tomar spoiler.

Mas, você deve estar perguntando ”Mas o jogo é todo estranho das ideia mesmo, bixo”, e é verdade, bixo, quase todo jogo que saí da cabeça do Levine é meio esquizóide das ideia, e geralmente esse é o charme deles (o que eu curto bastante). Mas Bioshock Infinite é estranho em outros departamentos. Não é surpresa pra ninguém que Levine curte dar uns palpite e críticas nos seus jogos, tanto de forma direta quanto indireta. O problema é que eu não sou muito fã de como Bioshock Infinite trata a luta de classes e a questão racial em sua história.

Ok, vamos rebobinar um pouco. Lembra que eu disse que a luta de classes é um dos assuntos principais das correntes marxistas? Lembra que independente do que façamos, tudo que produzimos materialmente e/ou tomamos por decisão autônoma, possui repercussão e intenção política? Guarde isso por um momento, pois vamos usar bastante disso ao decompormos o jogo de 2013. (jesus, 2013? to ficando velho) 

Um estudo de caso: Comstock e Columbia

Bem, já sabemos de todo o fru fru da estória de Bioshock Infinite, né? Booker DeWitt vai para a cidade fantástica de Columbia, fica fascinado com a realidade irreal da tecnologia que a cidade opera, mas acaba se envolvendo num conflito de ordem racial e pessoal, com um toque especial de sci-fi, certo?

Comstock é caracterizado com a aparência de um bom, velho e sábio homem branco. Lembra até um bandeirante.

Comstock é aquele que opera e administra a cidade, certo de que após aceitar o batismo e ter se transformado em um novo homem, ele poderia construir o caminho de Deus para o mundo e seus seguidores. Comstock atua sob o manto clássico do homem branco clarividente, aquele que possui não só a iluminação divina (o qual ajuda a legitimar seu poder), mas é dotado também da lucidez da razão. Inúmeros são as características que legitimam sua posição com Columbia, podemos até mesmo chamá-lo de populista se quisermos. (eita conceito mal interpretado hoje em dia, em)

A verdade é que, Comstock desempenha um papel fundamental para o jogo de polos políticos que Bioshock Infinite nos apresentará. O governo comstockiano recorre a valores conservadores para se efetuar, legitima não só uma postura definitiva de religião ”cristã” na sua cidade, como legitima e fortalece a postura de uma raça dominante, e subjuga aqueles que considera ”inferior”, raças não brancas, para uma região distinta e deplorável.

Devo dar créditos a uma coisa a obra: ela realmente constrói uma situação social muito interessante e intensa, o que com certeza desperta e agarra a atenção dos jogadores para a atmosfera do jogo. Frequentemente os jogadores são expostos com a dura realidade racista de Columbia, e as ações apenas se acumulam na medida que o jogo progride, alimentando (acredito eu) uma inquietação no jogador para tomar alguma providência.

Até que então, Levine decide introduzir o ”outro lado da moeda” durante o segundo Ato do jogo. E é aí, meus amigos, que as coisas ficam complicadas e estranhas.

A resposta dos subjugados: Vox Populi

”Vox Populi” nada mais significa do que ”Voz do Povo”, e é um ponto de contraste em relação a Comstock e seu governo/regime autocrata e racista. Sob o seu manto e cabeça, surpreendentemente temos uma representação feminina chamada Daisy Fitzroy.

Uma mulher negra, de postura forte e rebelde, a personagem encara e assume a liderança dessa organização revolucionária. Até então, somos agraciados com a verdadeira realidade de Columbia, o que até então já tínhamos ideia do que séria: as classes/raças menos favorecidas e subjugadas, sofrem e trabalham o dobro em relação a classe e raça favorecida, além de propriamente serem submetidos a linchamentos e agressões, pelo simples ato de existirem.

Fitzroy sustenta sua luta e ideologia com fatos e evidências, e o jogador é bombardeado com esses fatos e evidências desde o momento que pisa em Columbia. Os primeiros vinte minutos de apresentação da cidade, apresenta nenhuma figura/pessoa de cor, e com motivo, claro, para sustentar o choque na cena do linchamento público.

Afinal, o jogo até então apresenta uma postura clara em relação a seus valores, certo? Estamos certamente inclinados, a esse ponto do jogo, de dar e prestar total suporte a Vox Populi, afinal, por quais motivos você simpatizaria com Comstock a esse ponto? O climax no desenrolar do choque de classes/raças, nos demonstra um futuro inevitável: as raças subjugadas irão lutar contra as forças opressoras de Comstock. Mas algo estranho acontece, e o jogo muda completamente a forma de desenrolar o seu enredo.

O problema com a obra

De certa forma, Bioshock Infinite assume uma postura muito estranha no momento que o calor da revolução se inicia. A priori, a revolução começa e junto disso, inicia-se o processo de emancipação e negação dos valores que oprimiam as culturas subjugadas. E nada mais simbólico do que a revolução ser armada, afinal, com certeza a situação não se resolveria no papinho com um chá, não é mesmo?

A violência e a luta armada, querendo ou não, são processos quase que necessários para a emancipação dos valores antigos que cercavam Columbia e seus habitantes. Faz parte não só da natureza humana, mas como um fundamento cotidiano dos períodos da história da humanidade, Bioshock Infinite não nos apresenta nada de novo. O que eu acho estranho, e acredito que muitos outros podem estranhar, é como Bioshock Infinite encara isso.

Usando do próprio comentário do protagonista, no qual comenta que Fitzroy e Comstock são ”as duas faces da mesma moeda”, e a violência da revolução da Vox Populi, se opera no mesmo nível das ações e agressões daqueles que possuíam poder anteriormente. A sarjeta assumir uma postura de oposição à opressão, agora, os torna igual aqueles que são racistas por natureza? Os subjugados por suas raças, etnias e culturas, diferentes por seus valores, agora são bárbaros e selvagens, porque não conseguiram ser gentis com aqueles que os oprimiam?

Bioshock Infinite até então, opera e faz muitas coisas, discute diversos conceitos e realidades políticas, mas na hora H, ele fraqueja e recua para o seguro e famoso discurso de ”ficar em cima do muro”. Lembra do pensamento que eu falei pra tu segurar, de que confecções materiais (como um vídeo-game), irão desempenhar um papel direto ou indireto em vocalizar uma intenção? Bem, a atribuição de falas, colocações e pensamentos individuais de Booker e Elizabeth, legitimam um discurso de neutralidade, o qual podemos traçar diretamente para aqueles que escrevem a estória da obra.

A linha de pensamentos dos escritores e diretores (talvez apenas a do Levine), nada mais do que deslegitimam a revolução popular de Daisy e da Vox Populi. Por quais motivos? Bem, nada sustenta o argumento de colocar eles como ”farinha do mesmo saco”, sendo que sabemos muito bem que Fitzroy opera sobre circunstâncias totalmente diferentes do que as de Comstock.

Considerações finais

Sai daqui com esses papo de neutralidade, que de neutro tu não tem nada.

Sai daqui com esses papo de neutralidade, que de neutro só xampu é.

Ao fim de tudo, acho que é válido comentar agora que: eu não acho Bioshock Infinite um jogo ruim. Muito pelo contrário, é um jogo realmente muito bom e divertido. Ainda sou muito fã da brisa sci-fi de vários universos, e a temática central de ”constantes e variáveis” que o jogo discute em sua narrativa.

Mas ainda sou um extremo e eterno crítico da escrita e intenções políticas que sua narrativa tenta discutir, o que pra mim no fim de tudo, foi completamente escrita nas coxas, e ao fim do caso, apenas se torna uma boa desculpa pra tu sair metendo bala contra os dois lados do conflito.

No fim ao caso, não estou querendo dizer que devemos nos apegar a extremos e nos agarrar a eles, muito pelo contrário, se eu pude deixar claro nesse texto, é de que o mundo funciona sobre diferentes tons de cinza. Bioshock Infinite fundamenta os valores da filosofia de Kurz, ao evidenciar a decadência de um mundo moderno que se volta aos extremismos, mas comete o erro fatal de intitular a luta de classes e racial como apenas uma ”barbárie” qualquer, e bem, sabemos muito bem que essa ”barbárie” qualquer, é o catalizador de mudanças para uma nova realidade.

A dúvida no final é: será mesmo que os desenvolvedores de Bioshock Infinite, valorizam a neutralidade política nesse assunto? Ou será que eles só não sabiam/entendiam o que estavam tentando escrever? Bem, talvez nunca saberemos, a história ainda está sendo escrita, temos tempo para isso no futuro.

 

Conhecedor dos estudos históricos, amante da arte dos vídeo-games, streamer, ex pro-player de HearthStone, ilustrador e escritor.

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