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Análise | Tchia – Uma Obra Completa

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Análise | Tchia – Uma Obra Completa

Tchia pode ser visto tanto uma obra artística e lúdica quanto um registro histórico. Pode ser desfrutada como lazer e admirada por suas qualidades, mas também retrata, ensina e expõe. A análise a seguir busca enxergar a obra de maneira global.

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Inspirado e em homenagem a cultura do local de origem de seus criadores, Tchia pode ser visto tanto uma obra artística e lúdica quanto um registro histórico. Ao mesmo tempo em que pode ser desfrutada como lazer e admirada por suas qualidades, também retrata, ensina e expõe. Logo, seria um desserviço analisar o game sob um único viés – seja qualitativo ou técnico. A análise a seguir busca enxergar a obra de maneira global, no virtual e no real – dentro e fora do jogo – e mostrar como os jogos são uma ferramenta poderosa para todas essas funções.

Parte 1 – Tchia como um produto cultural

As crianças, órfãs, correm empolgadas para o entorno da fogueira, acesa entre pedras cobertas por desenhos e pinturas infantis. Ansiosas, mal podem conter seus ânimos por passar a noite ouvindo mais uma vez a história sobre uma menina chamada Tchia. É nessa imagem de tradição milenar e também metalinguística que os desenvolvedores introduzem o jogador ao mundo do jogo.

Afinal, dos desenhos nas paredes, aos contos ao redor de fogueiras, canções, danças, livros, filmes e, então, jogos eletrônicos, estamos também participando dessa roda, desse círculo mágico, para ouvir as histórias – sejam reais ou fantásticas – que mantém vivas e explicam, à sua maneira, nossas tradições, costumes, origens e também a nossa imaginação.

Antes, contudo, somos contextualizados: Tchia é “inspirado nos marcos, culturas, música, idiomas, folclores e tradições” da Nova Caledônia, terra natal dos co-fundadores da Awaceb, estúdio que criou o game. Por mais que a história e o mundo do jogo sejam fictícios, com detalhes adaptados em respeito às tradições, toda a obra é dublada “por talentos locais, falantes de francês e drehu, os principais idiomas” da região e permite ao jogador visitar “releituras de marcos e biomas famosos e ouvir uma trilha sonora original baseada nos sons locais e interpretada por artistas e corais tradicionais”. Tchia se entrelaça entre o real e o fantástico através da tapeçaria que o compõe.

Assim são as lendas que ultrapassam gerações. Entre o que realmente aconteceu, o que é fantasia, e o que foi sendo incrementado ou diminuído ao longo do tempo, ficamos com pedaços de verdades que montam diferentes retratos sobre o passado, presente e até mesmo futuro. Elas são carregadas de detalhes históricos, mas também culturais que refletem o imaginário de cada povo em diferentes eras.

Por mais que chamemos de “pré-históricos” aqueles que supostamente ainda não possuíam a capacidade de registrar e preservar a história, suas pinturas nas paredes das cavernas já nos contavam sobre suas rotinas e feitos. Os mitos gregos tentavam explicar o mundo, enquanto as pinturas egípcias demonstravam a hierarquia social e religiosa. Já os românticos exaltavam a imaginação e a fantasia, enquanto os renascentistas tentavam ser mais realistas e racionais.

Contudo, no decorrer das eras, em meio a guerras, colonização, desastres e progressos tecnológicos, muitos registros dessas incontáveis histórias que nos retratam foram perdidos. A preservação cultural é um tema sempre discutido e não só em relação a povos mais antigos – como no próprio Brasil. Até mesmo a preservação de jogos eletrônicos já é uma preocupação, em especial com o grande êxodo recente para o modelo 100% digital. Uma vez que os sistemas e servidores sejam desligados, inúmeros jogos não poderão mais ser acessados, como ocorreu recentemente com o desligamento das lojas digitais da Nintendo para o Nintendo Wii U e 3DS.

Nesse quesito, Tchia é também uma monumental realização de preservação cultural, também se utilizando da metalinguística: em como usamos nossas ferramentas e recursos contra um insaciável devorador das infâncias e escravizador dos adultos – o capitalismo desenfreado que tudo consome para encher sua barriga, bolso e ego (que eu poderia comentar sobre ele ser devidamente representado por um verme branco, mas vou deixar essa passar). Isso na pele e no mundo de uma garota que pertence a um povo que resiste e persiste ainda no mundo de hoje.

Outrora comentei numa rede social sobre o filme “Avatar: O Caminho da Água”. Disse que o que o diretor James Cameron realmente gostaria de fazer mas não sabe – ou não lhe compete, por ser cineasta e não game designer – se chama “videogame”. A capacidade de Tchia em nos colocar em meio a tribos, costumes, biomas e conflitos quase-reais ultrapassa a de Avatar em nos expor a tribos, costumes, biomas e conflitos fantasiosos (mas que também fazem alusão ao nosso mundo real).

O conceito de “avatar” já não é estranho para o meio gamer e digital, mas suas origens são muito mais antigas e seu significado amplamente transformado ao longo do tempo – do sânscrito avatara, “ava”, para baixo, e “tara”, passar, cruzar – significava uma descida divina, ou encarnação na religião hindu; Quando um espírito ocupava um corpo, seja humano ou animal, como Krishna ou Buda. A palavra viria a ser usada posteriormente por poetas para ilustrar uma “metamorfose” ou transformação e, nos anos 70, 80 e 90 começaria a popular o imaginário dos RPGs, web e jogos digitais como a representação do usuário/jogador nos mundos virtuais.

E, de certa forma, todas essas versões estão corretas. Assim como no filme de James Cameron os personagens transferem suas mentes paras seus Avatares a fim de poder explorar o mundo de Pandora, os avatares de videogames permitem que a mente – e ouso afirmar, o espírito – dos jogadores conheçam as regras, espaços e fisicalidades dos mais diversos mundos, em alguns casos até com o fenômeno da “extensão dos sentidos” invadindo também seus corpos físicos (leia-se você virar o corpo ou o joystick num jogo de corrida, por exemplo).

Assim sendo, os jogos podem ser janelas para conhecer, registrar e preservar não apenas mundos imaginários e fantásticos, mas também culturas reais do passado e do presente, mantendo vivas as histórias e tradições de diferentes povos e eras. Nesse sentido, Tchia não só é um válido produto cultural de registro histórico, mas também incorpora valores estéticos – sejam técnicos ou artísticos – e lúdicos que também o elevam como um produto cultural feito com amor, respeito e, principalmente, maestria.

Isso nos leva a segunda parte de nossa análise.

Parte 2 – Tchia como jogo eletrônico

Analisar uma obra apenas sob o viés de registro histórico-cultural levaria em consideração apenas alguns aspectos mais “frios”, como fidelidade e abrangência. Ao se tratar de uma obra artística – e mais, de um jogo eletrônico, que apresenta a união e equilíbrio entre características visuais, sonoras, técnicas e outros pontos mais subjetivos e intangíveis – é possível observar e qualificar também tais características, por mais que de forma mais opinativa.

Dito isso, é possível afirmar sem muita dúvida que Tchia se sobressai em todos esses quesitos. Mesmo sendo apenas o segundo jogo lançado pela Awaceb (sendo o primeiro um Platformer 2D deveras mais simples), sua apresentação visual, sonora, narrativa e o design de seus sistemas e mecânicas mostram que o estúdio possui não só amor e conhecimento por sua cultura, mas também domínio sobre as ferramentas e conhecimentos técnicos e artísticos usados no desenvolvimento de jogos.

Tchia é emocionante, divertido e usa de variadas inspirações em outros jogos para trazer uma aventura leve e cativante. Ao mesmo tempo em que fornece ao jogador diversas formas de tornar a jornada acessível e conveniente, o game também confia a ele uma quase total liberdade para que explore e avance a seu próprio ritmo. Passados os momentos iniciais do game, é possível explorar o mar do arquipélago e suas ilhas recheadas de tesouros, atividades e divertidas formas de travessia, conhecendo os biomas, habitantes e costumes de cada um.

No início do game, Tchia recebe de seu pai três presentes de aniversário: um estilingue, um planador e uma canção. Esses presentes representam os três principais aspectos de sua aventura: focar em alvos, exploração e música, e portanto os discutiremos mais à frente. Logo em seguida, ao ter seu pai sequestrado, Tchia desperta um poder de possuir objetos e animais (tal como um “avatar”), o qual, ao focar nesses alvos, lhe permite usá-los para sua travessia (como pássaros, golfinhos ou cervos) e defesa contra inimigos (como objetos inflamáveis e explosivos).

A seguir, Tre, amigo de seu pai, fornece outras ferramentas para ajudar na sua jornada: um barco à vela, uma bússola e uma lanterna, além de ensiná-la como tocar e aprender músicas em seu Ukulele que permitirão efeitos como, por exemplo, mudar a hora do dia.

Tchia está pronta, então, para ir em resgate de seu pai. E nós para conhecermos e analisarmos estes três aspectos de sua aventura.

O poder de possuir objetos e animais não está apenas ligado à uma mecânica do game mas também, obviamente, à sua história. Através de sua aventura, Tchia descobrirá mais sobre o mundo ao seu redor e também sobre si mesma. A narrativa, apesar de simples, é contada com muito bom humor e coração. As cutscenes possuem momentos que vão do deslumbre às tradições de cada povo, até cenas de comédia muito bem trabalhadas. Essa narrativa principal, contudo, não se estende muito e vai depender do ritmo com o qual o jogador avança a história.

As músicas, de forma semelhante, não estão apenas conectadas a minigames de ritmo semelhantes a The Last of Us Part II e dos originários Guitar Hero e Dance Dance Revolution (além dos efeitos que fãs de Zelda estão familiarizados desde Ocarina of Time e The Wind Waker). Elas são a forma com que Tchia e outras pessoas se conectam, e conectam suas histórias. Um belo retrato disso está em Louise, uma amiga que Tchia conhece em sua jornada, que tem sua música cantada em sua língua, o francês. Após se apaixonar por Tchia e sua cultura, Louise resolve aprender drehu (o dialeto original de Tchia) para poder cantar uma versão traduzida de sua música. Devo acrescentar que toda a trilha sonora do game é fantástica, e seus momentos musicais roubam a cena – são os meus favoritos.

Já a travessia e a exploração é o fio condutor de toda essa jornada, e fica nas mãos do jogador. As ferramentas que os desenvolvedores fornecem para isso são ótimas, embora não 100% coesas entre si, com um detalhe crucial podendo minar todo o restante da experiência.


Atravessar os mares é um destaque, em especial pela possibilidade de explorar um mundo submarino, encontrando tesouros e fauna variada – que trazem variedade à locomoção. O mesmo vale para a travessia nas ilhas: não só a alta velocidade dos cervos ou o voo das aves, mas se balançar em árvores para pegar impulso e saltar com seu planador é igualmente divertido.

O mundo é um playground, e há diversas atividades como corridas, caça ao tesouro, upgrades e MUITOS colecionáveis para personalizar o visual de Tchia, seu barco e instrumento musical. Tudo com muita leveza e capricho.

Se guiar pelo mundo, contudo, pode ser um problema. Munido apenas de um mapa e uma bússola, o jogador não tem um preciso feedback de sua atual posição. Existem algumas placas em bifurcações que atualizam a sua posição no mapa – o que é um conceito muito interessante para incentivar a exploração e aventura.

O problema é que essa ideia destoa de todo o cuidado do game em dar ao jogador uma experiência suave e sem entraves. Se sentir perdido pode ser um incentivo a explorar em jogos mais exigentes, em Tchia porém, pode fazer com que o jogador se prenda mais do que deveria nos marcadores das missões principais para se guiar.

Fazendo isso, toda a riqueza e variedade que o mundo de Tchia tem a oferecer pode acabar passando batido, e a jornada perder seu brilho antes do que deveria. Como citado anteriormente, a história principal não é longa ou particularmente desafiadora. Logo, se guiar apenas pelos marcadores acaba sendo uma armadilha que encurta o que poderia ser uma grande aventura.

Fosse, outrora, mais fácil de se localizar no mapa, haveria possivelmente mais incentivo para o jogador visitar os pontos de interesse nas proximidades, e desfrutar da totalidade das maravilhas que Tchia tem a oferecer. Mas um sistema pensado em prol da exploração pode acabar sendo um empecilho para a leveza da experiência como um todo, gerando frustração ou diminuindo a grandeza da jornada.

De qualquer forma, jogadores que confiarem mais na exploração visual do que em seu mapa e bússola ainda poderão desfrutar de uma incrível aventura, com atividades divertidas, mecânicas caprichadas e um visual e trilha sonora impecáveis. O trabalho da Awaceb não só é importante, culturalmente relevante e louvável, como também é um jogo feito com muito carinho e maestria artística. É impossível recomendar viver a aventura e o mundo de Tchia o suficiente.

Formado em Design de Games pela Universidade Anhembi Morumbi e com mais de 5 anos de experiência como Motion Designer e Editor de Vídeo, já palestrou sobre GameDev e leva os joguinhos à sério por mais que sua mãe diga que não dá dinheiro (não dá)

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