Cinema
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso alcança novos patamares quebrando paradigmas | Crítica COM spoilers
Em Amazing Fantasy #15, Stan Lee e Steve Ditko narram a origem do Homem-Aranha, numa fábula moral, em que um jovem nerd, rejeitado pelos amigos da escola, ganha poderes após ser picado por uma aranha irradiada, e imediatamente os usa para ganho próprio. Mas seu desprezo em impedir um assalto acaba causando a morte do seu amado Tio Ben. A história acaba com a moral “Com grande poder deve também vir grande responsabilidade” uma frase que resume toda a essência do gênero de super heróis.
Em 10 páginas, Lee e Ditko criaram a base de um novo tipo de herói humano, complexo e multifacetado, que iriam desenvolver juntos ao longo de quatro anos de colaboração, e serviria como molde para gerações futuras, chegando até a ser usado para redefinir os que vieram antes. Centenas de artistas vieram e deixaram sua marca no personagem, adicionando personagens, histórias e conceitos que se tornariam ícones, tradições a serviço da mitologia do Homem-Aranha.
Mas é quase que inevitável que uma ideia inicialmente dada como revolucionária acabe se transformando no lugar-comum para o fã, e qualquer ideia nova seja rejeitada a favor de mais do mesmo. O que antes é inovador se torna um fator restritivo.
Com a franquia Aranhaverso, os produtores Phil Lord e Chris Miller estão interessados em desafiar os paradigmas do que uma história do Homem-Aranha deveria ser. O filme de 2018, ao apresentar o Miles Morales como um jovem que recebeu os poderes do Homem-Aranha após a morte de um Peter Parker tradicional, defendia a ideia que todo mundo pode usar a máscara. O multiverso, recurso normalmente introduzido nos quadrinhos para contar mais histórias dos mesmos personagens, aqui é uma ferramenta para mostrar a amplitude de possibilidades que o conceito de Homem-Aranha pode abarcar, se você estiver disposto a aceitar novas ideias. É um esforço de inovar comparável à obra de Stan e Steve.
Cinco anos depois, Homem-Aranha Através do Aranhaverso faz a ousadia do primeiro parecer conservadora.
ATENÇÃO: SPOILERS DA TRAMA NO TEXTO ABAIXO!
Um ano depois de salvar o multiverso da destruição, Miles (Shameik Moore) enfrenta os problemas de equilibrar duas vidas. As responsabilidades de super herói sendo um empecilho na vida social e acadêmica, o Miles se vê sobrecarregado e sem ninguém que o entenda de verdade. Agora que ele viu as possibilidades de outros mundos, a vida normal dele parece pequena e solitária, coisa que é sentida por seus pais Jefferson e Rio (Brian Tyree Henry e Luna Lauren Velez), que não estão lidando bem com o seu bebê indo embora do ninho.
Já em outro universo, a vida de Gwen Stacy (Hailee Steinfeld) está não está muito melhor. Ainda abalada pela morte de seu amigo Peter, a Mulher-Aranha não deixa ninguém mais se aproximar como amigo, e sua relação com seu pai (Shea Whingham) é cada vez mais distante, uma vez que na vida civil ela não sabe se comunicar e como heroína ela é perseguida pelo pai, acusada de matar seu amigo. Quando um portal dimensional traz seres-aranha de outra dimensão, ela aceita imediatamente deixar a sua vida para trás.
As vidas dos dois heróis se colidem novamente quando o vilão Mancha (Jason Schwartzman) surge como o novo inimigo da vez. Criado na explosão do reator no clímax do filme anterior, os poderes do vilão o permitem gerar portais para outras dimensões. Isso chama a atenção da Sociedade-Aranha, da qual a Gwen faz parte. Liderada por Miguel O’Hara (Oscar Isaac), o Homem-Aranha de 2099, esse grupo reúne centenas de homens, mulheres e criaturas Aranha para combater ameaças ao longo de todo o Multiverso para impedir que vilões saiam das suas dimensões originais. Miguel, o “único Homem-Aranha sem senso de humor”, acredita que a origem anômala de Miles é uma ameaça à integridade do universo.
O filme propõe a ideia que na vida de todos os homens-aranha há “eventos canônicos”, acontecimentos essenciais para a progressão de um homem-aranha, sem os quais o universo não se sustentaria e se implodiria causando uma reação em cadeia ao longo de todo o Multiverso. A Sociedade Aranha garante a manutenção desses eventos, sendo que um deles a morte do Capitão de polícia, no caso o pai de Miles.
Com essa premissa, o filme dá um novo centro emocional ao conceito de se rebelar contra as convenções. No começo do filme, uma tutora de carreira aconselha a Miles a vender “história de superação”. É isso que é esperado de um menino negro, latino e bolsista: Se enquadrar nas narrativas preestabelecidas do sistema e aceitar as migalhas que ele receber. Você sabia que nos quadrinhos originais de Super Choque, o herói tem uma família nuclear completa? A morte da mãe do personagem foi uma exigência dos executivos da versão animada, que achavam que a tregédia familiar tornaria a história mais realista. A luta do Miles não é mais para provar a si mesmo que ele pode ser o Homem-Aranha, é pra provar pra toda a sociedade (Aranha) que o caminho que ele escolheu é válido, e não é de hoje que pessoas no poder tentam decidir como pessoas em grupos marginalizados deveriam contar suas histórias.
Não é a toa que a primeira fala do filme é “Vamos fazer isso diferente”. Quando se propõe uma perspectiva nova no mundo, você vai sofrer represálias. O roteiro de David Callahan (Mortal Kombat, Mulher Maravilha 1984), equilibra tanto o pessoal quanto o grandioso para contar essa história de amadurecimento, usando o recurso narrativo do Multiverso a partir da visão existencial: Se existem infinitas variações de você, qual o valor do indivíduo na multidão?
A confiança do Miles em provar sua validade é representada nos aspectos técnicos e artísticos do filme também. Não se contentando em repetir o sucesso do estilo de animação diferenciado do primeiro filme, o trio de diretores Joaquim dos Santos (Liga da Justiça Sem Limites, A Lenda de Korra), Kemp Powers (Soul) e Justin K. Thompson se desafiam a ir mais longe. Isso significa mais universos, com diversos estilos de arte e experimentações novas. Os tons de aquarela expressionista do mundo da Gwen, em que a paleta de cores pode mudar de um corte para o outro dependendo do estado emocional do personagem, o mundo de Mumbatthan, lar do aranha indiano Pavitr Prabhakar (Karan Soni), é amarelado como as folhas de um gibi de décadas atrás, a sede futurista da Sociedade-Aranha é branca, uniforme e com a áura conformista e autoritária de uma loja da Apple. Mas o destaque vai para Hobie Brown, o Punk-Aranha (Daniel Kaluuya), um aranha antifascista que luta com a sua banda contra o sistema. Tudo nele transpira inconformismo, esendo representado como um monte de colagens em constante mudança, como um flipbook, cada uma recortado de um lugar diferente com contornos e texturas distintas, ele sempre se destaca no ambiente. O estilo de arte que casa com a temática narrativa ao desafiar o que se espera de um filme animado, um filme de ação, uma adaptação de quadrinhos.
Essa criatividade toda não resulta em uma reinvenção da roda, mas dá perspectivas revigorantes à expressividade de contar essas histórias. Você já viu centenas de filmes adolescentes, mas Miles e Gwen “sentados” de ponta-cabeça numa gárgula, com a paisagem de Nova Iorque à distância invertida, ilustrando tão lindamente que eles finalmente estão na companhia de alguém com a mesma perspectiva, passa uma mensagem.
Esses temas já foram abordados em Loki ou o clássico episódio “Epílogo” de Liga da Justiça Sem Limites. Mas ainda temos muito potencial nessas histórias, desde que nós permitamos que novas perspectivas sejam encorajadas e não suprimidas, e não nos deixemos nos limitar pelas regras arbitrárias que ditam como essas histórias deveriam ser. E o mundo só tem ao ganhar se ouvir o que Homem-Aranha: Atraves do Aranhaverso tem a dizer.