Cinema
Crítica Sem Spoilers | Vingadores: Ultimato – A explosão da década Marvel nas tela de cinema
A primeira página você já conhece. Com um orgulhoso “Eu sou o Homem de Ferro”, Tony Stark assumia para o mundo sua identidade e dava início a uma das empreitadas mais audaciosas do cinema. Era um tudo ou nada da Marvel que, como um herói pouco antes do ato de sacrifício, usava suas últimas forças para encontrar a salvação do universo de personagens de uma das editoras de quadrinhos mais importantes da história. Não existia outra alternativa pra Marvel, que amargurava a iminência da falência. Tinha que dar certo. As chances eram baixas… Talvez 1 em 14 milhões… Mas o time liderado por Kevin Feige, com o reforço de Robert Downey Jr e Jon Favreau – os profissionais certos para a atividade certa na hora certa – conseguiu completar a missão. A Marvel alcançava, em definitivo, as telas de cinema.
Desde então, a Marvel só consolidou sua construção. Novos rostos davam carne, sangue e tecido aos traços, corpos e mantos concebidos por grandes gênios da nona arte. Kirby, Ditko, Ross, Kubert, Bendis, Deodato, Romitta, Starlin, Lee. Depois de Homem de Ferro, pudemos ver Thor, Capitão América, Viúva Negra, Gavião Arqueiro – nós tivemos até um Hulk! Histórias solos, interligadas em um mesmo universo coeso, com ligações ora sutis, ora escancaradas, concluíram a primeira fase deste plano. Vingadores deu o peso e respeito necessários a uma equipe de super-heróis, interligando filmes que funcionavam independentes em uma produção de escala nunca concebida antes no cinema e que viria a ser uma referência neste gênero – que em sua época, sequer era reconhecido como um.
E continuou. Mais filmes, mais histórias, mais personagens, mais identidade visuais. Mais grandes profissionais descobertos, que juntos criaram uma fórmula para entreter, contar histórias e fascinar. Fascinar mesmo, de fascínio. O Universo Cinematográfico Marvel virou uma febre, uma nova Era de Ouro para os personagens de quadrinhos, com recordes batidos e grandes cifras alcançadas.
Num estalar de dedos, 10 anos se passaram e a Marvel mudou o jogo. E com mais um estalar de dedos, a própria Marvel deu fim a ele. Guerra Infinita elevou a escala já grandiosa do estúdio e marcou o início do ocaso. A jornada destes heróis precisava terminar. Vingadores Ultimato se tornou um acontecimento, um fenômeno. Uma espécie de tragédia anunciada: a grande conclusão do estúdio.
Depois de tanta espera, Vingadores Ultimato chega aos cinemas não só para dar pontos finais, respostas e conclusões. O longa é uma grande homenagem aos Estúdios Marvel, uma ode ao seu nascimento e sua trajetória, que vem para integrar ainda mais seus filmes, valorizando-os e firmando-os como parte de um projeto uno. Vingadores Ultimato se torna um dos filmes mais importantes do MCU não apenas por sua qualidade individual como projeto, mas por tornar seus 21 antecessores ainda mais relevantes.
Em Vingadores Ultimato acompanhamos os Heróis Mais Poderosos da Terra após a vitória de Thanos (Josh Brolin). Dos restos dos diferentes campos de batalha, vemos uma brilhante condução dos roteiristas Christopher Markus e Stephen McFreely (Vingadores: Guerra Infinita, Capitão América: Guerra Civil e Capitão América: O Primeiro Vingador). A dupla está livre para manipular os elementos da história não só por terem escrito sua “primeira metade” Guerra Infinita, mas por terem participado ativamente dos projetos do estúdio. Especialmente, Markus/McFreely acompanharam e desenvolveram a jornada de Steve Rogers/Capitão América – além de escreverem a trilogia de filmes, também criaram a série Agente Carter. O personagem, sendo um dos pilares da Saga do Infinito, divide o centro da ação com Tony Stark/Homem de Ferro. São estes personagens, junto dos Vingadores da primeira formação, que precisam resolver assuntos pendentes e cumprir suas jornadas de herói. E, dentre estes fechamentos, a ligação com o espectador do MCU.
Um grande acerto do roteiro está em sua abordagem, que opta por fugir de uma estruturação mais convencional dos atos. Nos minutos iniciais do filme, somos convidados a avaliar diferentes perspectivas. É uma construção muito mais complexa do que o habitual aos filmes do estúdio, que sabiamente confia na formação de seu público – que já consumiu uma década de filmes do Universo Cinematográfico Marvel – e em sua capacidade de ler e refletir códigos da linguagem cinematográfica. O filme bebe dos eventos trágicos do MCU para explorar o sentimento de derrota e de descrença dos heróis. Isto é muito bem traduzido por Anthony e Joe Russo na condução do longa. Os ambientes e cenários criados pela dupla exploram o mundo interno dos personagens, que evoluem da destruição e do vazio até a esperança e triunfo. O vazio da perda de 50% da vida universal também se reflete nos espaços vazios dos quadros, que evocam o desconforto, a solidão e o medo. As cores saturadas do começo também comunicam a perda do propósito e do heroísmo, que ganham vida de acordo com o avançar da narrativa. São escolhas técnicas que ditam o tom e dão profundidade para Vingadores Ultimato de forma muito mais refinada que seus antecessores. A escolha, porém, apesar de ser potente e consolidar camadas e interpretações, acaba por divergir do realizado nos projetos anteriores do MCU. É natural que o espectador de longa data destas produções sinta estranhamento e até desconforto com estas construções – em especial, com os cenários e ambientes – que bebem de influências mais presentes no cinema italiano do que nos blockbusters hollywoodianos.
O avançar da trama e a construção de objetivos e conflitos – internos e externos – possui fluidez e ritmo justos. O filme é dinâmico e prazeroso de ser assistido, e suas 3 horas de duração não são sentidas por boa parte dos telespectadores. Este feito é ainda mais louvável quando notamos que Vingadores Ultimato não é um filme com 3 horas de duração, mas com 11 anos de duração. Por mais que seja um filme individual, o filme carrega o peso de toda construção deste universo. O longa aproveita de conceitos muito bem detalhados para explorar e revisitar este legado da Marvel e realizar uma grande epopeia ao MCU. Estas homenagens não são gratuitas nem construídas em cima de puro saudosismo, são coerentes e impulsionam a história sempre para frente, sempre estipulando novos objetivos e conflitos. Este cuidado faz com que o filme funcione muito bem, independente da ligação emocional do espectador com o Universo Cinematográfico Marvel. O resultado é grandioso, divertido e compreensível para qualquer espectador – e profundamente catártico e gratificante para aqueles que acompanham fielmente a Marvel no cinema e em outras mídias.
Vingadores Ultimato transita por diferentes tons, por cenas de ação, aventura, drama e comédia sem perder a coerência. Um grande mérito também da montagem do filme, que sempre conduz com clareza o espectador. As habituais piadas e gags fora de hora, neste longa, não existem. O humor é justo, e de acordo com os personagens e situações propostas. O filme também encontra equilíbrio ao apresentar a trajetória de cada personagem. O que poderia ser discutido é a escolha de abordagem da trajetória de alguns personagens em específico, em especial Thor e Hulk.
Thor é um dos personagens que mais sofreu para encontrar seu tom. O equilíbrio entre o peso de sua história, da abordagem de seus primeiros filmes solo e do humor trazido pela visão de Taika Waititi foi um grande acerto de Guerra Infinita. Porém, este tom se perde em Ultimato pela escolha de priorizar o personagem como alívio cômico, tirando a densidade e o foco de seus dramas e conflitos. Bruce Banner/Hulk também sofre do mesmo, com o agravante de que a cada filme suas prioridades e relações são resetadas. Resultado do costumeiro medo do Universo Cinematográfico Marvel de aprofundar seu espectador na psicologia e sentimentos de seus personagens, sempre usando da comicidade para nos manter em uma camada de consumo mais rasa e descompromissada. Por conveniência e por melhor desenvolvimento da dinâmica entre os personagens, a escolha é inteligível, mas é inegável que a potência de seus percursos individuais é reduzida. A audiência do MCU terá mais facilidade para ignorar a abordagem por já estar acostumado, mas um espectador menos próximo ou que avaliar apenas o filme em âmbito individual, sem seu contexto e universo ao qual está inserido, poderá identificar a fragilidade da trajetórias destes personagens.
O mesmo podemos dizer da suspensão de descrença do longa. Será fácil para o espectador do MCU relevar pontas soltas e conveniências do roteiro, exatamente por já ter codificado este descompromisso como parte da linguagem dos filmes do estúdio – e até mesmo como uma homenagem aos quadrinhos, que normalmente apresentam conceitos complexos de forma simples e sem exigir do leitor uma racionalização muito aprofundada ou lógicas da vida real. Porém, o espectador que precisar preencher lacunas ou encontrar respostas verossímeis poderá encontrar furos na lógica do roteiro de Ultimato. Isso se dá, principalmente, pela inclusão de um conceito já utilizado em outros filmes e pela proposta de desenvolvê-lo de forma nunca vista antes. O grande desafio é ensinar ao público novas formas de leitura destes códigos, já enraizados por outros filmes – referenciados no próprio Ultimato – e lidar com as consequências e divergências lógicas que os diferentes movimentos do roteiro podem causar em Ultimato e nos futuros filmes do MCU.
Como o último filme de uma saga cinematográfica, Vingadores: Ultimato traz todo o peso da qualidade técnica e visual presente do MCU. É interessantíssimo notar onde estes elementos e efeitos visuais surgem na trajetória do estúdio e como os filmes da Marvel colaboraram significativamente com a evolução do cinema. O visual recebe todo o apoio sonoro necessário, com um ótimo trabalho de design e mixagem de som e uma trilha sonora poderosa, que não tem medo de se evidenciar.
Sem nenhum tipo de revelação e sem expor nomes, podemos dizer que os atores e atrizes aproveitam das situações para dar profundidade a jornada de seus personagens. O roteiro sabiamente explora novas faces de seus heróis e vilões, tornando-os ainda mais complexos e levando-os a lugares ainda inéditos mesmo depois de 21 filmes lançados. Chris Evans e Robert Downey Jr possuem obviamente o maior tempo de tela para desenvolver seus personagens, mas outros também conseguem aproveitar do tabuleiro rearranjado em Ultimato para causar interesse no espectador e aumentar a complexidade e humanidade de seus papéis. E a humanidade, sem dúvida, é um fator importante em Ultimato. É a busca pela humanidade que realça as cores e elevam os heróis, nos presenteando com frases e momentos icônicos, feitos para ressoar na memória do espectador – e ficarem gravados eternamente no coração dos fãs.
Enfim…
Vingadores Ultimato é a conclusão de um dos projetos mais audaciosos já vistos na história do cinema, sem precedentes. A Marvel Estúdios cria um universo coeso de longas, unidos pela mesma energia e sentido, e aproveitando de sua década de histórias para contar uma história profunda, complexa e repleta de movimentos. Vingadores Ultimato se torna um dos filmes mais interessantes do MCU não só por ser individualmente bem realizado, mas por dar a amálgama final a este universo e valorizar ainda mais seus antecessores, concluindo, de fato, um ciclo.
Vingadores Ultimato também dá espaço para explorar novas camadas de seus heróis mais centrais e desenvolver novos conflitos e situações. Isto potencializa o chamado do herói, que junto das imagens e homenagens criadas, eclode em sequências e momentos que possuem sentido e objetivo dramático, não sendo apenas fan service. A Marvel finaliza sua Saga do Infinito com um épico que, seguramente, se torna um marco na cultura pop. De dimensões de odisseia, Vingadores Ultimato é a explosão de splash pages, balões de fala, uniformes coloridos e ação.
O fim também faz parte da Jornada do Herói. Se não há fim, não há herói. Sabiamente, a Marvel nos entrega o necessário para concluir este círculo e nos preparar para as próximas aventuras, arcos e sagas. O Universo Cinematográfico Marvel se tornou, entre mais acertos do que erros, a adaptação perfeita de um mundo dos quadrinhos para as telas de cinema. Resta, para aqueles que aproveitaram esta jornada, agradecer por presenciar um momento tão único na história dos quadrinhos, do cinema e da arte. Resta, para aqueles mais saudosistas, voltarem para o primeiro filme – para aquela primeira página – e assistir novamente estas cores tornando-se em carne, osso e impacto cultural.