Cinema
Crítica | Host – O terror que é um autêntico filho da pandemia de 2020
Host é um terror matemático, que realiza bem a estrutura e clichês do gênero. Apesar de sua ideia não ser de todo original, é a forma como utiliza da identidade das ferramentas de videochamada e da vivência do isolamento e as converte em estética que faz com que o filme seja um ótimo exemplo a ser seguido.
2020 será eternizado como o ano em que paramos. Mesmo no auge de nosso conhecimento científico, fomos pegos de surpresa por algo que estava além de nossa perspectiva e fomos obrigados a refletir sobre nossos costumes – em especial, nossa comunicação.
Em diversas esferas de nossa vida humana moderna, nos deparamos com o desafio de reapreender e reestruturar como estabelecemos relações, como mantemos contato. E o campo artístico foi uma destas esferas. Não apenas porque a arte, por si só, já tem em seu cerne o constante espelhamento e debate da realidade, mas porque a relação público-obra-artista foi mobilizada. Estes artistas de diferentes linguagens artísticas tiveram que repensar seu processo artístico, sua obra final e, especialmente, seu alcance e entrega ao público. Sem público, sem o olhar do outro, a arte perde seu objetivo. Sem um destes pilares a arte acaba por não se completar como arte (a menos, claro, que esta ausência seja provocada por um propósito artístico previamente intencional e parte da própria arte em si. É o quê? Pois é).
O cinema, que vivia uma de suas épocas mais comercialmente felizes, viu salas se esvaziarem e seus rivais de longa data, ferramentas digitais de distribuição como plataformas de streaming e o VoiD, ganharem o mercado. Se tornou necessário que todos os processos que envolvem a concretização de um projeto audiovisual se reinventassem. O cinema é uma arte coletiva. Como manter o máximo possível de profissionais dentro e fora das câmeras sem comprometer a segurança e saúde dos envolvidos? E como levar estas produções sem depender da experiência exclusiva das salas de cinema? Como aproveitar deste período, desta vivência coletiva, e traduzi-la em mensagem, estética e conceito para a obra? Para estas artes ligadas a atuação, o caminho mais óbvio de construir uma relação com o público foi recorrer às telas cotidianas. Usar do acesso á internet para chegar ao espectador por smartphones, notebooks, tablets e afins. Para o teatro, essa transição tem sido mais desafiadora. Para o cinema, no entanto, esse tipo de experimentação não é nada inédito.
De todos os gêneros, o terror sempre se mostrou o mais fértil para a experimentação na linguagem cinematográfica. Tanto do ponto de vista técnico como temático também. Foi no terror que alguns dos maiores profissionais da história do cinema puderam testar diferentes ideias, discutir diferentes tópicos, usando do lúdico do assustador e monstruoso para traduzir anseios de suas gerações. Logo, era de se esperar que este cenário de pandemia mundial inspirasse bons trabalhos no gênero, que utilizassem do nosso sentimento de medo universal para criar obras contundentes e com muito a dizer.
Host
Host é um destes filmes. Lançado na Shudder, uma plataforma da AMC voltada para títulos de terror, suspense e ficção científica, o média metragem é um autêntico filho do período de pandemia do Covid-19. Dirigido por Rob Savage (Dawn of the Deaf, Strings), que também assume o roteiro com Jed Shepherd e Gemma Hurley, Host nos apresenta um grupo de amigos que, durante o período de lockdown, realizam uma sessão com uma médium via Zoom. Porém, ao longo da noite, percebem que chamaram a atenção de algo maligno.
Host tem como proposta construir sua narrativa emulando uma plataforma de videochamada, trazendo uma abordagem próxima e verossímil e brincando com a percepção do público sobre o real e o fictício. A ideia em si não é original. Tanto pelo momento – utilizar a identidade das calls é um caminho já óbvio dadas as circunstâncias do cenário atual – como também por outras produções. Filmes como The Den e Amizade Desfeita 1 e 2 já exploraram esta possibilidade antes, e Buscando… foi ainda mais a fundo, realizando tudo com grande maestria técnica. Este tipo de abordagem é uma modernização natural dos filmes de terror found footage, que por sua vez se inspiram dos falsos filmes snuff e mockumentaries da segunda metade do século XX. O que torna Host um filme tão interessante não é a idéia em si, mas a realização. Em apenas 56 minutos, o filme constrói muito bem as estruturas do gênero e utiliza da nossa proximidade com estas ferramentas digitais para entregar um filme que é, legitimamente, fruto do sentimento de isolamento e de busca por novas respostas criativas causado pela pandemia do coronavírus.
O mundo ficcional de Host busca ser o mais imersivo possível, utilizando dos nossos sentimentos aflorados para potencializar a tensão e o terror. Tudo que nos é apresentado busca ser justificado, exatamente para que o espectador não quebre sua suspensão de descrença. Um bom exemplo disso é o tempo de duração do longa, que aproveita do tempo de chamada disponível para versões free do Zoom. O filme está sempre atrelando seus elementos a algo com que possamos relacionar em nossa própria realidade, seja para acreditarmos na história que está sendo contada ou mesmo para entendermos como metáforas de nossa própria realidade atual.
O roteiro é matematicamente simples. Estabelece tudo que é necessário para que possamos nos interessar por estes personagens e por suas relações, cria conflitos e constrói uma gama coerente e precisa. Nos oferece uma boa camada de foreshadowings (pistas, elementos apresentados no início de uma narrativa e que retornarão posteriormente no avançar da história) já nos primeiros minutos para que tenhamos tudo que é necessário para sermos manipulados pela narrativa.
Um roteiro bem estruturado e consciente de seu objetivo é vital para qualquer produção, mas é ainda mais para médias e curtas-metragens, que precisam utilizar menos tempo para contar suas histórias, passar todas as informações e construir estados emocionais em seu público. E isto é algo que Host faz muito bem: construir estados. A tensão, um elemento primordial pra narrativas de terror, é presente do início ao fim do filme e influencia diretamente na percepção de passagem de tempo do espectador. De fato, seus 56 minutos parecem ser muito mais longos e angustiantes. Rob Savage cumpre todas as regras de estrutura do gênero e as faz de forma competente. Utiliza clichês mas, com consciência. Por isto, pouco importa se o espectador prevê o que virá em tela – a sua condução não permite que o espectador escape. Uma de suas grandes estratégias é a construção da ironia dramática – isto é, fazer com que nós, espectadores, tenhamos conhecimento de fatos antes dos personagens. Em Host, Savage nos mostra imagens, nos dá informações e as retém pelo máximo de tempo possível. Já que grande parte do público está acostumado com filmes de terror que constrõem sequências de tensão que resultam sempre em jumpscares, Host propositalmente não entrega resoluções que aliviem o stress do espectador, obrigando-nos a passar mais tempo aguardando que os personagens tomem ciência do perigo. E aí sim, quando os poucos jumpscares acontecem, o público está mais propenso de ser pego de surpresa.
Rob Savage também acerta ao entender como realizar a ponte entre a filmagem cinematográfica e a captação das videochamadas. Neste aspecto, Host leva vantagem em comparação com produções anteriores. Fomos obrigados a nos familiarizar com estas ferramentas. Nos tornamos muito mais íntimos de seu funcionamento e, mesmo aqueles que não as utilizavam, foram obrigados a torná-las parte de seu cotidiano. Isto traz ganhos pra pesquisa artística, pois pode-se realizar estudos e enxergar estas ferramentas com muito mais propriedade. Savage busca construir planos que causem desconforto, que sempre possuem grandes espaços vazios e/ou escuros (que obriga o espectador a esperar que algo apareça ali). Algo utilizado em diversas produções, do gênero ou não. Porém, Savage também incorpora a má qualidade da imagem e cortes de queda de conexão. As multitelas das chamadas são incorporadas na narrativa e brincam com nosso foco. Sempre estamos olhando para cada uma das câmeras, procurando emcontrar onde a ação ocorrerá. Esta imprevisibilidade aumenta o stress do espectador e, consequentemente, o susto. Savage também explora funções (diminuir e aumentar volume, mutar, filtros, efeitos) e brinca com planos (utilizando um pau de selfie para um plano zenital, ou celulares na mão para uma câmera subjetiva). É a atenção aos detalhes e a vontade de aproveitar cada possibilidade que fazem da atmosfera de Host tão rica e sinestésica.
O elenco traz a intensidade necessária para que a atuação carregue a naturalidade de uma videochamada. Também constroem os estados necessários de forma crível. A escolha de manter os nomes reais dos atores e atrizes nas personagens é interessante, o que reforça o caráter found footage do filme e a brincadeira entre real e ficcional. A montagem dá o amarro final no longa, mantendo o dinamismo da conversa e conduzindo a atenção do espectador quando trocamos de câmera para câmera, aproveitando das reações das atrizes para intensificar situações – fazendo em algumas ocasiões quase um jogo de plano e contraplano.
Ah! Um último adendo. Assim como filmes pensados para lançamento em cinema possuem uma experiência privilegiada na sala de cinema, Host também é mais efetivo ao estar nas plataforma onde foi pensado. Assista no computador ou celular e, de preferência, em chamada com outra pessoa…
Enfim…
Host é um terror matemático, que realiza bem a estrutura e clichês do gênero. Apesar de sua ideia não ser de todo original, é a forma como utiliza da identidade das ferramentas de videochamada e da vivência do isolamento e as converte em estética que faz com que o filme seja um ótimo exemplo a ser seguido.
Host é um autêntico filho da pandemia do Covid-19. Um filme que pode, a curto e/ou longo prazo, influenciar diversas outras obras – do gênero ou não – e representar a produção cinematográfica neste período tão desafiador para a indústria. Host funciona muito bem na ficção que cria, mas é nos momentos que pode ser lido como alegoria para a crise do coronavírus que o filme encontra sua grande potência. Afinal, o terror de ter que lidar com as consequências da arrogância humana perante as forças da natureza é real – e estamos muito mais desprotegidos do que podemos imaginar.