Quando bem executados, os maiores clichês do mundo podem contar belíssimas histórias. E esse é o caso com A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas. Um filme que anda com ousadia sobre a linha que o separa de ser um filme infantil previsível, mas se mostra como um longa para toda a família cheio de personalidade e significado.
Antes de ser vendida para a Netflix, a nova animação da Sony Animation, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, tinha um título provisório mais simples: Super Conectados. Apesar de ser aparentemente um título sem muita inspiração, seria um bom nome para uma obra audiovisual que fala tanto sobre conexões humanas. Aqui, temos um filme sobre uma família de sangue, com um forte conflito interno entre a adolescente aspirante a cineasta, Katie Mitchell, e seu pai, o esforçado e não muito familiar à internet, Rick Mitchell.
O filme utiliza alguns clichês em sua estrutura narrativa e em seus personagens, como a relação problemática de pais e filhos que é utilizada desde que o ser humano começou a contar histórias, então isso pode erroneamente levar a pensar que esse é um longa com mais do mesmo, uma experiência vazia. É sempre bom lembrar que clichês existem porque são formas eficazes de conexão com o público, e não necessariamente são sinônimos negativos.
Quando bem executados, os maiores clichês do mundo podem contar belíssimas histórias. E esse é o caso com A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas. Um filme que anda com ousadia sobre a linha que o separa de ser um filme infantil previsível, mas se mostra como um longa para toda a família cheio de personalidade e significado.
Como o nome dá a entender, esse é mais um filme onde as máquinas tomam o controle e querem destruir a humanidade. Esse tipo de história costuma carregar consigo uma crítica social, e com essa animação não é diferente, tendo o seu alvo principal de crítica a utilização da internet como um todo e os desdobramentos dessa utilização.
O filme poderia facilmente descambar para um discurso propagandista “anti tecnologia/ internet”, com críticas bem intencionadas, mas vazias. Daquele tipo condenando as redes sociais e partindo do pressuposto que se não fosse a internet a humanidade estaria a mil maravilhas, bem “pikachu no pescoço”, sabe?
Claro, não podemos entrar em uma bolha e ignorar que a integração social das tecnologias, internet e redes sociais definitivamente estão moldando a forma como nos entendemos como seres humanos, gerando diversas questões filosóficas e morais quanto a privacidade, senso de indivíduo e empatia.
Porém, ignorar os pontos positivos da revolução tecnológica é no mínimo questionável. Ao colocar benefícios e malefícios da internet na ponta do lápis, por exemplo, é possível ver que é um tema muito mais complexo que abrange múltiplas camadas, e diferente do que certas pessoas no twitter possam pensar, não dá para resolver essa questão em 240 caracteres.
Por um lado, estamos cada vez mais viciados em likes e informações superficiais (could I interest you in everything, all of the time?). Por outro, um jovem de 24 anos pode ser salvo por um aplicativo de saúde em seu apple watch. É importante não santificar ou demonizar a internet/ tecnologia, afinal, ela é uma ferramenta, e uma ferramenta muito nova e muito poderosa que a humanidade ainda não dominou por completo.
Nosso papel é tentar utilizá-la da melhor maneira e passar adiante os erros e acertos para que as gerações futuras possam se sair melhor. Bem, isso se o facebook não se tornar um deus senciente e se fundir com o Elon Musk para escravizar a terra.
Assim como o incrível Homem-Aranha no Aranhaverso, o longa da família Mitchell utiliza algumas técnicas de animação 2D junto ao 3D para realçar expressões faciais e refletir o estado de espírito das personagens. Os diretores e escritores Michael Rianda e Jeff Rowe (Gravity Falls), aproveitam o tema central do filme para integrar forma e conteúdo, trazendo “movimentações de câmera”, inserções de cenas e direção de arte que se lambuzam na cultura linguística internética, indo de memes até o humor nonsense em diversos momentos. Essa harmonia faz com que a utilização desses elementos não soe forçada, já que se apresenta na tela se alinhando com a própria veia artística de Katie e seus filmes caseiros, quase como uma metalinguagem.
Apesar de não se destacar tanto em um primeiro momento como a animação, a escrita de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas exala carinho criativo, repensando alguns clichês, como o discurso de que o amor seria o ponto forte dos humanos, e focando nas relações entre pais e filhos. Katie e Rick têm mais destaque por conta de seus conflitos, mas o irmãozinho, Aaron, e a mãe, Linda, não ficam de escanteio. Além de terem papéis importantes na trama, a posição como membros mais “conciliadores” da família evoca uma empatia instantânea. Até o doguinho tem uma função interessante.
A relação de Katie e Aaron é uma parceria sincera entre melhores amigos com a qual me identifiquei bastante. Não consigo pensar em uma pessoa melhor para compartilhar as minhas “bizarrices” ou contar piadas terríveis que não a minha irmã, então, enquanto assistia ao filme ao lado dela, durante cenas específicas, aquelas lágrimas de felicidade que você não percebe nem que estão caindo marcaram presença.
Como dito anteriormente, o conflito interno do filme é entre Rick e Katie, pai e filha, entre o velho e o novo, estabilidade e ousadia. Isso é interessante por ser um espelhamento do conflito externo: enquanto a família têm que superar uma revolução tecnológica comandada por uma IA que não acredita na empatia humana, Katie e Rick têm que buscar essa mesma empatia, pois só assim conseguirão quebrar as correntes de seu pré-julgamento. Então temos duas visões que são e serão eternamente cíclicas, o embate entre criador e criatura.
A visão da adolescência, míope e definitiva, que não consegue perceber os sacrifícios feitos pelos pais, julgando a cada resposta negativa como uma tentativa de a podar como a “incrível pessoa” que ela será um dia. É, de uma forma ou de outra, ver a figura paterna ou materna como um obstáculo no seu caminho, um vilão a ser derrotado.
A visão do pai, cristalina, mas curta, que tenta blindar a sua cria do fracasso a todo custo, esquecendo que a dor e todas as decisões difíceis a serem tomadas nesse período são os pontos de virada para a vida adulta. É desse medo que vem a necessidade de guiar em cada passo, inclusive esquecendo as vontades da filha, como se fosse uma extensão de sua própria vida. “Eu sei o que é melhor para você”.
E por conta dessa revolta eterna , o ciclo de transformação é inevitável. O pai se torna o filho e o filho se torna o pai. E no filme, essa transformação é traduzida em tela com uma cena belíssima.
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é um ótimo filme que exala carinho a cada frame, a cada cena na tela. Desde a direção de arte até o roteiro, é um longa que não tem medo de usar elementos clichês para contar uma nova-velha história, e com a sua personalidade marcante muitas vezes faz com que nem percebamos que já vimos essa história outras milhares de vezes. Uma história sobre família, seja aquela de sangue ou a que nos escolheu, mas acima de tudo, uma história sobre conexões humanas e como essas relações dão sentido a essa nossa existência que às vezes parece, mas só parece, tão pequena.
À minha querida irmã, ao meu pai e à minha mãe, obrigado!