Cinema
Análise: Liga da Justiça de Zack Snyder – Duas versões de um filme, e nenhuma delas é boa
O filme, lançado em março deste ano, é resultado de uma série de decisões corporativas, tragédias pessoais e campanhas de redes sociais
É bem dificil imaginar o filme Liga de Justiça de Zack Snyder acontecendo em qualquer outro contexto. O filme, lançado em Março deste ano, é resultado de uma série de decisões corporativas, tragédias pessoais e campanhas de redes sociais num espaço de quase meia década, passando por uma pandemia e reestruturações nas empresas envolvidas.
Para tentar resumir cinco anos de drama: As filmagens do filme Liga da Justiça foram brevemente interrompidas devido ao afastamento de Zack Snyder após à perda de sua filha Autumn, ao qual a versão atual do filme é dedicado. A decisão da Warner foi então contratar o diretor Joss Whedon para finalizar as refilmagens que tinham sido agendadas para concluir o filme, teoricamente, seguindo as especificações originais de Snyder. Mas não foi isso que aconteceu, e o estúdio, em reação às críticas negativas de Batman V Superman: A Origem da Justiça, usou a oportunidade para executar mudanças extensas de tom e roteiro no filme, estendendo a duração das refilmagens. O filme que foi lançado em 2017 era uma versão reformulada, com cenas e diálogos inteiros trocados, ritmo inconstante e com edição escancaradamente corrida. Ficou claro que o que foi lançado era uma colcha de retalhos feita por quem não tinha confiança no produto que estava fazendo, mas não queria perder o investimento.
Os anos subsequentes foram caracterizados por campanhas agressivas de fãs do Zack Snyder nas redes sociais, em alguns casos envolvendo assédio e ameaças de morte de jornalistas, relatos de abuso e racismo na passagem de Joss Whedon na produção encabeçado pelo ator Ray Fisher, além do próprio Zack Snyder dando migalhas de informação do filme e planos do futuro nas redes sociais. Mas mais importante que isso, diversas reformulações na estrutura corporativa na Warner, que foi formalmente adquirida pela AT&T em maio de 2020, e o lançamento do serviço de streaming HBO MAX, onde o filme foi enfim lançado.
O Corte Snyder, como é conhecido pelos fãs, é uma anomalia mesmo comparado aos clássicos processos de cortes do diretor lançados após a versão original, como Apocalypse Now! de Francis Ford Copolla ou Blade Runner de Ridley Scott. Essa versão do filme não é a “restauração” de algo que foi alterado posteriormente. As filmagens, pelo menos conforme o plano de Snyder, não chegaram a ser concluídas, logo, o projeto foi podado antes de nascer. O produto que temos aqui é uma tentativa de aproximação do que seria a visão original de Zack Snyder em 2016 a partir de gravações incompletas, com o incremento de 70 milhões de dolares para finalização de efeitos especiais e filmagem de cenas novas. O que mais dá pra se aproximar é a versão do diretor Richard Donner de Superman II, feito 25 anos após o lançamento da versão original em que o veterano havia sido demitido no meio das gravações. A diferença é que Donner não tinha como refilmar as partes que faltavam décadas depois, então teve que pegar emprestado o final do Superman I. Mas assim como a nova versão de Superman II foi em grande parte impulsionada pela campanha promocional de Superman: O Retorno de Bryan Singer, a Liga da Justiça de Zack Snyder existe principalmente como um nome chamativo na HBO MAX. Tanto que chegou a ser concebido como uma minissérie de 6 partes lançadas semanalmente.
Com tantas variáveis, reviravoltas e condições atenuantes que marcaram a produção, a única certeza que podemos ter é que esse nunca foi o filme que os idealizadores tinham em mente. É o filme que eles conseguiram fazer, por bem e por mal.
Eu precisei de toda essa explicação antes de falar do filme para tentar ilustrar que é impossível distanciar a produção conturbada com o produto final que recebemos. Esse filme tem um ar de celebração que só faria sentido após um longo conflito. Aqui o Zack Snyder tem carta branca para realizar qualquer ideia maluca para o seu filme. Obviamente, o resultado é algo que nunca teria sido lançado comercialmente nos cinemas.
Se é pra definir a Liga da Justiça de Zack Snyder em uma palavra, ela seria: Excesso acima de concisão. É tanto excesso que não cabe em uma palavra só.
A sinopse básica do filme permanece muito semelhante à versão que foi aos cinemas em 2017. Após a morte do Superman (Henry Cavill), o guerreiro alienígena Lobo da Estepe (Ciaran Hinds) reune seu exército para invadir a Terra em busca das Caixas Maternas, três artefatos capazes de destruir toda a vida na Terra. Batman (Ben Affleck) e Mulher Maravilha (Gal Gadot) vão atrás de recrutar Aquaman (Jason Momoa), Flash (Ezra Miller) e Ciborgue (Ray Fisher), os únicos humanos na Terra com poder suficiente para defender a Terra.
Apesar da estrutura da história ser praticamente a mesma, o estilo visual icônico pelo qual Zack Snyder é admirado transborda a cada momento. As câmeras lentas, enquadramentos grandiosos, o uso inspirado de músicas licenciadas para pontuar a teor da cena, a paleta de cores dessaturadas. Para os apreciadores de longa data do diretor, isso é um prato cheio. Parte do espetáculo está em criar seqûencias visuais em escala grandiosa, digna da ideia de que os super heróis são mitologia moderna. Apesar da longa duração, o filme não é particularmente denso em conteúdo, o que não é por si só um demérito. O filme se inspira não nos filmes contemporâneos de super herói, mas sim nos épicos clássicos de David Lean, Cecil B. Demile e Akira Kurosawa. Contos de heroísmo, que transmitem valores universais simples, porém impactantes.
Mas essa ambição é sabotada, como de praxe nos filmes de DC do diretor, uma vez que a história contada entra em conflito com o aspecto visual.
Muito se diz que o Zack Snyder “não entende os personagens” que adapta, mas essa explicação é um tanto simples e não dá conta de explicar os problemas e confusões presentes na narrativa. A questão é que há uma dissonância imensa no que o filme diz e o que ele mostra.
Toda a trama do filme gira em torno de que, desde a morte do Superman, a esperança está se esvaindo do mundo, que cada vez mais está caindo no caos na sua ausência, deixando a humanidade desunida e despreparada para a invasão que está por vir. Um flasback que daria orgulho a Frank Frazetta mostra (de forma gloriosa) que, no passado longínquo, a Terra foi capaz de repelir a primeira invasão de Darkseid através da união dos atlantes, amazonas, deuses, alienígenas e as “tribos dos homens” (uma mistura deliciosamente anacrônica de guerreiros africanos, medievais, mongóis e nórdicos). Essa sequência é a Era dos Heróis, o maior demonstração do que a humanidade é capaz de realizar, o ideal ao qual a Liga deveria fazer jus(tiça) se quiser ter alguma chance contra a ameaça que está por vir. O filme então, é sobre como deixar de lado as diferenças e conflitos pessoais em prol de um bem maior, que nenhuma pessoa conseguiria alcançar sozinha.
O problema é que o Universo DC que foi criado até agora não comporta essa narrativa. Em seus dois filmes anteriores, Zack apresentou um Superman hesitante que antes de mais nada se sente alienado do mundo, que por sua vez o trata com desconfiança e agressão. A ideia de que o Superman simboliza algum tipo de esperança que foi perdida simplesmente não casa com os acontecimentos mostrados até agora. A estética sombria, sem cores e anêmica que o Snyder criou nesse filme nunca mudou desde o Homem de Aço. O mundo antes e depois do Superman é igualmente escuro, sombrio e sem esperança. A ideia de união também não se solidifica. Quando chegamos no ato final, em que a Liga finalmente se une na batalha derradeira, as jornadas individuais de cada membro da Liga não corroboram nessa temática.
A duração longa do filme permite que haja espaço de sobra pra desenvolver cada um dos novos personagens. O Aquaman é um filho de Atlântida e a superfície, um homem de dois mundos que não parece pertencer a nenhum. Atlântida o vê friamente como um membro da realeza com uma função a cumprir, enquanto o povo dos vilarejos remotos que ele visita tratam ele como um salvador, uma figura mitológica que surge nos momentos de dificuldade e quando vai embora tem sua saida anunciada literalmente com um coro de mulheres. Ninguém o vê como uma pessoa.
O Barry Allen (Introduzido a UMA HORA E DEZ MINUTOS de filme), um jovem inexperiente, cujos poderes de velocidade o tornam capaz de ter empregos simultaneamente para pagar a sua faculdade, mas também o deixa em um estado de hiperatividade constante, incapaz de interagir normalmente com humanos, e morando em um galpão com dezenas de telas ligadas constantemente para se manter estimulado. Temos um pequeno vislumbre de como é viver no mundo dele na sua introdução: Salvando uma moça de um acidente de carro. Devido a sua supervelocidade, ele vive correndo cercado de estátuas, alienado de todos.
O mais próxmo desse filme ter um protagonista, é em Victor Stone, o Ciborgue. Vítima mais grave dos cortes da versão do Whedon, aqui a história dele é muito melhor desenvolvida. A relação conturbada dele com o pai Silas (Joe Morton), cujo trabalho estudando a caixa materna o fez negligenciar suas conquistas acadêmicas, piora quando Victor é mutilado em um acidente e Silas usa a mesma caixa materna para salvar a vida dele. Agora como um ciborgue capaz de acessar qualquer sistema de computador, Victor se sente só mais uma experiência do seu pai. Ray Fisher retrata o personagem como um Frankenstein moderno, se isolando do mundo e amaldiçoando seu criador em busca da sua humanidade perdida. Essa dinâmica renderia um filme solo, e o Silas ser interpretado por pelo homem que criou a Skynet é a cereja do bolo.
Esses três seres, cujas habilidades super humanas os alienam da sociedade, teoricamente poderiam encontrar na liga um grupo de semelhantes que compadecem das mesmas mazelas. Mas apesar desse potencial, em nenhum momento o filme elabora o que une essa equipe. Cada um se une por razões diferentes, mas em todo momento há uma sensação de que eles não são uma equipe, e sim cinco pessoas que por acaso estão resolvendo o mesmo problema.
E eu suspeito que a razão principal disso é o atrito fundamental entre a visão pessoal de heroísmo do Zack Snyder e os ideias que os heróis que ele adapta representam.
Em todo os seus filmes da DC , mas principalmente nesse, o conceito de poder é abordado de forma muito peculiar. No Universo de Snyder, possuir poder é algo que te define como indivíduo e o maior conflito que existe é se vale a pena um indivíduo poderoso usar seu poder, e portanto ser pleno, deparado com um do mundo vai tratá-lo com hostilidade por ser quem você é. É uma metáfora básica das histórias de super heróis, mas maleável o suficiente para poder se desdobrar em vários significados. E o Snyder usa isso da forma mais superficial e literal possível.
Na visão de Snyder, é um herói quem usa o seu poder, sua individualidade, diante do mundo. Quando Snyder coloca um feito heróico em evidência, desacelerando o tempo para podermos contemplá-lo, com uma tirlha sonora épica exaltando a ação, ele está comunicando visualmente que a demonstração de poder em si é um ato heroico. E quem desafia ou questiona o uso desse poder, está questionando a pessoa em si, que deve ser detida através da imposição desse poder. Questões de responsabilidade, abuso ou dever cívico podem ser até levantadas, mas a discussão é quase simbólica, por que no fim das contas, a solução dos problemas sempre vem da pessoa certa fazendo o que só ela pode fazer, e ela pode fazer isso por que é melhor que é melhor que os outros.
O resultado dessa filosofia é que os personagens parecem não ter motivação real para fazerem o que fazem. A comparação dos personagens com deuses é correta até demais. Eles vivem numa dimensão a parte dos mortais, descem quando são necessários, realizam feitos fantásticos e violentos e voltam para o isolamento. Pouco se explora das identidades secretas deles e até as relações familiares ou de amizade são tratadas de forma fria e distante. O filme pouco se importa em ver a perspectiva de uma pessoa comum ao presenciar esses deuses. E nem entre os semelhantes os heróis se permitem ser mais humanos. Além do Flash, e em alguns momentos o Ciborgue, ninguém nunca baixa a guarda, todos estão sempre imponentes, grandisosos, distantes. Não há sinal da ternura e carinho da Diana dos filmes comandados pela Patty Jenkins. Não há um progressivo entrosamento dos personagens, eles só decidem trabalhar juntos, mas nunca como uma união. Aliás, o filme confronta a ideia de união a todo momento. União é o que os vilões fazem, algo a ser impedido, se não, corremos o risco de um tirano tirar toda nossa individualidade.
A maior crítica que se faz aos heróis da DC é que eles são “poderosos demais” e portanto, de difícil identificação. É uma noção que os criadores tentam abordar humanizando os personagens por diversas abordagens. Pro Zack Snyder, os humanos comuns são um obstáculo ou alguém que encoraja os heróis de verdade, mas nunca estão em pé de igualdade.
E o maior estranhamento vem do fato de que todas essas ideias é tratado de forma extremamente honesta. Quando o Superman, supostamente o símbolo de esperança, reaparece na batalha final, ele contribui com uma sequência brutal de socos e mutilação, com linguagem corporal e atitudes indistinguiveis do monstro descontrolado É quase cômico quando a Mulher Maravilha salva um grupo de crianças no museu de um atentado terrorista com bomba, executa o lider com uma explosão que destroi parte do museu, e o filme retrata isso como sendo um momento inspirador para uma criança. A dimensão da incompreensão o Zack Snyder para com os personagens é tamanha que o que pra ele é uma homenagem sincera e e sem ironia do heroísmo causa a impressão de ser uma paródia de mau gosto. Muito se diz sobre a violência constante que presenciamos na mídia que consumimos nos deixa dessensibilizados, mas o nível de brutalidade da execução final que a Liga comete contra o Lobo da Estepe, e a linguagem cinematográfica indicando que eu deveria estar empolgado com isso, me deixou mais incomodado do que muitos filmes mais violentos.
Mesmo assim, discordar filosoficamente com a tese desse filme não necessáriamente torna ele RUIM. É possivel apreciar um filme mesmo que ele vá na contramão dos seus próprios valores ou ideias. O problema é que esse nem é a melhor versão dessa história. Porque tudo na criação dessa versão do filme indica que “contar a melhor história” não era a prioridade.
O excesso sempre foi um dos maiores problemas de Snyder. Já faz tempo que ele tem dificuldade de jogar fora uma cena pelo bem da coesão e foco do filme como um todo. Para o diretor parece ser que todo conceito, toda ideia é igualmente importante, e portanto, precisada mesma atenção. E nesse filme, onde ele tem carta branca, essa tendência ultrapassa todos os limites. O ritmo desse filme é inexistente, subtramas desnecessárias, com personagens que não fariam falta alguma se fossem cortados, tomam tempo demais e tiram o foco dos protagonistas, diálogos expositivos repetem informações que o publico já sabe. E, é claro uso indiscriminado de câmera lenta para toda e qualquer ação, como se sua VISÃO fosse grande demais para mentes pequenas, e ao desacelerar o Snyder está fazendo um favor para que nós mortais sejamos capazes de compreende-la.
A impressão é que o filme foi feito com a meta de TER o máximo de coisas possível, comprovar todas as teorias de fãs, esfregar na cara de quem duvidou a existência do filme, não deixar nada de lado. Ele enche o filme de coisas, mas nunca está completo.
Isso resulta em um filme inchado e sem foco, onde todos os elementos promissores tem que competir com um monte de detalhes, cenas e personagens pouco relevantes. A demonstração do poder do Flash, que mostra tudo de bom que a direção de Snyder tem a oferecer, poderia ter sido um incrível clímax de um filme de duas horas e meia em que a jornada do Ciborgue fosse a trama central. Mas no filme que temos ela é só vêm depois de mais de três horas de gordura, e a minha empolgação já tinha desgastado dois capítulos antes.
Mas o mais irritante é quando a trama é interrompida para indicar OUTROS filmes. São diversas cenas como o “Knightmare” de Batman v. Superman, que não servem para nada além de mostrar o plano do “Snyderverso”, que o publico JÁ SABE que não vai para frente. Uma visão do futuro, que mostra um Superman corrompido pelo Darkseid, acontece sem aviso nenhum e quebra todo o ritmo do filme, o epílogo final de 17 minutos, que foi gravado durante a pandemia, é escancaradamente uma colcha de retalhos, com o CG mais malfeito do filme e enquadramentos que tentam esconder que nenhum desses atores filmaram juntos. Mas pior que isso é uma cena, na metade do filme, que mostra a Martha Kent (Diane Lane) tentando convencer a Lois (Amy Adams) a não desistir da humanidade. É uma cena tocante, emocional, e honesta sobre esperança e seguir em frente após uma perda (Tema que deve ser bastante pessoal para Snyder). Que é estragada imediatamente, quando é revelado que a “Martha” era o Caçador de Marte disfarçado. O filme estraga a história que está tentando contar pra indicar uma história que quer contar no futuro (E provavelmente nunca vai conseguir).
Com tantos problemas assim, fica até compreensível o por que que a Warner e Whedon acharam necessário consertar os erros desse filme na versão original. Apesar das piadocas constantes, aquela versão fazia questão de humanizar mais os personagens. São adicionadas cenas com os membros da Liga se entrosando, discutindo coisas além de exposição, o Aquaman abaixando a guarda e revelando a vulnerabilidade sob a fachada solitária por ter pisado no Laço da Verdade aprofunda mais o personagem do que 4 horas de Snyder. Outra grata adição são as discussões quanto a ressureição do Superman, que na versão do Snyder não passa de uma questão estratégica. Se mexer com a vida é moralmente correto, se alguém sequer tem esse direito. Isso leva a um momento íntimo em que o Batman confessa a sua culpa pelo que fez com Clark. “Ele era o mais humano de todos nós”. E de fato, são dadas várias chances para mostrar o Superman sendo de fato mais humano. A cena incial da perspectiva de duas crianças vendo ele em ação ajuda melhor a vender a ideia que ele representava a esperança. A atitude mais positiva após a ressurreição, salvando civis e dando frases de encorajamento cafona, acabam sendo essenciais pra mostrar POR QUE o Superman é o melhor entre nós, por que a possibilidade de ele se corromper é uma tragédia. A versão de cinema é longe de ser boa, mas houve um entendimento de que a ideia original precisava de ajustes. Se a primeira versão do filme revela o perigo de um estúdo tomar o controle total de um filme, esse mostra o perigo de dar liberdade demais a um diretor que não está preparado.
Muito se fala sobre esse filme ser feito para o fã. Afinal, uma parte significativa da trajetória desse filme envolve a campanha maciça do #ReleaseTheSnyderCut. E se você era uma das pessoas que se identificava com a visão do diretor com o universo, que acompanhava todos posts que o Snyder lançava nas redes sociais revelando os planos dele, é fácil entender esse produto final como uma vitória que o diretor está compartilhando com você. Mas eu, como alguém que viu esse processo de longe, só consigo vee um diretor recebendo carta branca para alimentar os seus piores vícios enquanto artista, sabendo que seja qual for o resultado, os fãs irão validar o que ele entregar, pois só o fato desse filme existir já é causa de celebração.
Já eu não consigo engolir que esse filme seja de fato a visão original dele. Não só por que ele deixou a produção quando o filme ainda estava incompleto e inacabado ponto de precisar de um orçamento milhonário de pós produção, mas no sentido de que nossa perspectiva muda toda hora, e quatro anos é bastante tempo para pensar e repensar com novos olhos as escolhas que você fez. A ideia de exibir o filme em formato 4:3 nunca teria passado pela cabeça de alguém dirigindo um filme de circuito convencional, muito menos estava atendendo a pedido de fãs. E as cenas que alguém apontaria como sendo “para os fãs” estão lá de forma gratuita, easter eggs que duram uma cena inteira, cujo propósito é atiçar o público ideias que nunca vão sair do papel. Quando algum diretor que eu admiro faz coisa igual alegando estar pensando em mim, 90% das vezes a minha reação é um grunhido de frustração.
O que significa que o filme seja falso. O diretor chegou a comentar que escolher fazer a versão em preto e branco do filme justamente porque durante a produção original, tudo que ele viu do filme foi as cenas no copião, que tradicionalmente é em preto e branco, com todo o material filmado, sem nenhum tipo de edição. Essa decisão mostra o quanto o filme é pessoal para o diretor e o quanto ele não parecia estar interessado em fazer um filme, de fato.
Snyder já mencionou que o seu filme favorito é Excalibur, de John Boorman. O diretor, após passar a década de 70 numa malfadada batalha de realizar uma adaptação cinematográfica d’O Senhor dos Anéis, usou o aprendeu nesse processo para fazer uma adaptação do conto do Rei Artur. É um épico, que ilustra de forma potente e poética o processo civilizatório da Europa, a chegada do cristianismo e sua eventual decadência, com bruxas, cavaleiros e castelos grandiosos. É nas palavras de Snyder “A maior união de cinema e mitologia”.
A Liga da Justiça tem a mesma ambição grandiosa, mas o abordar a visão mitológica dos heróis de forma tão confusa e superficial, a Liga da Justiça não faz jus às suas inspirações. Excalibur conta a história de Cavaleiros, magia, poder e como isso molda o mundo, mas tem no seu centro a relação de Artur, Lancelot e Guinevere. O mundo expansivo de Tolkien só se tornou amado pelo público nos cinemas por que ele nos foi apresentado através de personagens que aprendemos a amar. Não temos nada disso na Liga da Justiça de Zack Snyder. Uma mitologia que não dá espaço à humanidade, mesmo que ela se manifeste num alienígena ou um deus, não tem utilidade para nós.
Eu sinto que o filme do Snyder poderia ter se feito algo semelhante se ele de fato se empenhasse para fazer um filme narrativamente focado e estivesse disposto a sacrificar algumas xodós em nome do projeto como um todo. Em vez disso, ele optou por gastar 70 milhões para produzir algo que mistura um filme, os bonus de DVD e o que seriam as prévias de Comic-Con das outras duas continuações que nunca vão se concretizar. Infelizmente, seja por intromissão excessiva do estúdio ou por um diretor sem foco, temos duas versões desse filme, e nenhuma delas é boa.