Concebido como obra literária de Frank Herbert, Duna (1965) é uma história de ficção científica que conta a saga de Paul Atreides que, junto de sua nobre família, faz uma viagem ao planeta de Arrakis em busca de uma especiaria chamada melange. Essa substância é utilizada para viagens espaciais, mas também é considerada propriedade sagrada e alucinógena dos humanos que vivem no planeta desértico, os Fremens. Dirigido por Denis Villeneuve, responsável por filmes como Sicario(2015) e Prisioners(2016), a adaptação cinematográfica Duna(2021) estreou nos cinemas no dia 21 de outubro, com a missão de retratar esse clássico da literatura sci-fi em uma roupagem moderna e altamente produzida.
Um passado de expectativas
Tratando da história, é preciso ter em mente que a função de Duna não se limita apenas a adaptar o grande livro de ficção científica de Frank Herbert, mas também dar uma vida cinematográfica digna, que fuja do seu passado controverso. O projeto ambicioso e magnânimo de Duna do diretor chileno Alejandro Jodorowsky, nunca aceito pelas produtoras, guarda sequelas do que nunca foi, apesar de ter uma influência inegável na produção sci-fi moderna. Além disso, sua personificação no Duna (1984) de David Lynch teria sido melhor se não tivesse existido, sendo responsável por conceber uma imagem comicamente tosca de todo um projeto; no entanto, Denis Villeneuve parece – acertadamente – não estar preocupado com essas expectativas ociosas, e traça um caminho mais particularizado nisso tudo.
O diretor, em suma, favorece a história, tornando-a passivelmente tragável mesmo a quem não tenha lido o livro original. Parece que os conflitos políticos são distribuídos de forma a não tomar espaço de certos aspectos mais profundos que, ao meu ver, dizem respeito às características intrínsecas de Paul. Seus sonhos e estados delirantes – a sua relação com a especiaria – são fundamentais ao nos puxar para o buraco escuro em que a trama se esconde. Esse equilíbrio entre a grandiosidade do vazio e a psyché de Paul se complementam, sem se esgotar nas cenas de ação meramente ilustrativas dos demais acontecimentos. Isso prova que, dentro de uma grande produção, Villeneuve soube priorizar a mesma assinatura presente em Arrival (2016) e Blade Runner 2049 (2017). Dessa forma, reafirma sua capacidade em elaborar grandes longas de ficção-científica sem se desfazer de suas propriedades mais sensíveis.
Duna faz um bom proveito visual do deserto dos Emirados Árabes e da Jordânia.
Duna retrata o valor da busca em meio ao desconhecido
Importante ressaltar que Duna se destaca pelo trabalho exercido na sua estética. Existe uma preocupação em contar essa complexa história em ritmo cadenciado, para se ressaltar um temor do desconhecido. Talvez não seja do agrado de fãs mais aguçados de filmes de ação, mas as imagens que se demoram, e se preocupam em despertar sensações, constroem o alicerce que sustenta toda a beleza de Duna. Nesses momentos a ambientação desértica é verdadeiramente aproveitada, e ganha sua devida magnitude em sintonia com a trilha de Hans Zimmer. Inclusive, o trabalho sonoro é um dos principais responsáveis por ampliar essa imersão e ressaltar momentos em que experimentamos uma tensão pelas dúvidas que assombram o seu universo. Ao contrário da ‘jornada espiritual esclarecedora’ que Jodorowsky teria planejado, Villeneuve parece, num primeiro momento, explorar o próprio abismo sombrio das questões levantadas pelos personagens.
De fato, existe uma preocupação no interior da história em ressaltar, sem deixar explícito, alguns tópicos reflexivos. A própria jornada de Paul Atreides, que se prepara a vida toda para uma aventura da qual consegue ter premonições através de sonhos, revelam algumas possibilidades sobre o destino, tendo em paralelo que Villaneuve explora um fator parecido com essas visões em Arrival (2016), que serve como ponte pra uma desconstrução narrativa – que pode ser ou não uma possibilidade para uma eventual segunda parte de Duna. Além disso, o próprio vazio imenso do deserto, e a busca por essa especiaria ambivalente, permite perguntarmos: o essencial está intrinsecamente ligado ao devir do rumo ou ao propósito alcançado? São questões que se abrem para o horizonte de areia percorrido no filme
Um outro fator responsável pelas expectativas em cima de Duna é, certamente, a escolha do seu elenco. Timothée Chalamet faz um trabalho consistente ao representar Paul como um personagem imaculado e receoso, que vai se abrindo para um destino obscuro no seu desenvolver. Zendaya Maree, ao interpretar Chani, surge muito mais como uma possibilidade do que propriamente algo consolidado, e sem entrar em detalhes, finaliza como um elemento a ser esperado. Destacam-se também Oscar Isaac (Leto Atreides) e Rebecca Ferguson (Jessica Atreides). Dentro dessas escolhas, existe também uma preocupação em representar uma variedade étnica existente no mundo de Duna, como o ator Chang Chen (Dr. Wellington Yueh), médico do duque Leto, bem como o elenco que interpreta os Fremens.
Nessa primeira parte a personagem Chani permanece uma incógnita.
No fim das contas, Duna (2021) molda uma experiência bem acessível, desenvolvendo suas incógnitas de forma arrastada e absurdista; e, mesmo em seus 155 minutos de duração, o longa abre mais espaços do que promove desfechos. Sua distopia literária é preservada, e adapta bem seu ambiente epistemológico, nos tornando familiares a esse mundo ficcional sustentado em seu sistema de crenças. Assim como seu visual, que é tingido pelo coração de Arrakis, o deserto, e traz uma série de designs criativos de naves, vestuários e personagens – propícios para um livro conceitual. A sonoridade também é fator indissociável, fazendo com que as trilhas ecoem na cabeça mesmo após o filme, e valorizem Duna como um título excepcional de retorno aos cinemas – seguindo todos os cuidados, é claro. Porém, qualquer conclusão é precipitada, visto que os personagens ainda guardam ambições, sonhos e alteridades posteriores.
Jornalista, especialista em Metafísica e Epistemologia (UFCA) e Filosofia e Autoconhecimento (PUCRS). Sou apaixonado por cinema, filosofia, música e literatura. Confluo essas áreas na escrita das minhas críticas.