Análises
Análise | Moonrider é um sinal de resistência
A alguns anos atrás, talvez eu nunca imaginaria que jogaria um game brasileiro, que me despertasse carinho e amor, em intensidades similares àqueles que joguei no meu finado SNES, sendo eles peças chaves de inspiração para essa obra em questão que estarei analisando: ”Vengeful Guardian: Moonrider”.
Além disso, Moonrider é muito mais do que apenas um joguinho novo do pessoal da JoyMasher, talvez com intenção ou não, os desenvolvedores deixam uma mensagem e marca muito especial no seu novo título. E tal mensagem talvez seja um pouco complicada de decodificar para aqueles que não são brasileiros, ou, para brasileiros que não compareceram nas aulas de História durante sua formação inicial.
Essa análise, claramente vai discutir os valores e qualidades do novo título do estúdio, mas ouso dizer que por acaso, ela também se infiltrará em discussões que permeiam a realidade política do Brasil, assim como algumas reflexões historiográficas sobre essa realidade. Por que estou avisando isso? Bem, é fácil: brasileiro tem o péssimo costume de dizer que ”odeia política”, e evita falar sobre. E a parte engraçada, é que o ato dele odiar e não discutir política, é automaticamente um ato político.
Sem mais delongas, entraremos na nossa análise de ”Vengeful Guardian: Moonrider”, lançado neste ano no dia 12 de Janeiro, para as plataformas de PlayStation, Switch e Steam (por ora, não está disponível aos consoles da Microsoft). Aproveitando o gancho, confira depois nossa análise do penúltimo jogo dos desenvolvedores, o maravilhoso Blazing Chrome.
O que exatamente é Moonrider?
Ok, confesso que a sequência introdutória do texto faz o jogo parecer algo extremamente complexo, mas na verdade na superfície não é. Vengeful Guardian: Moonrider é um belíssimo jogo de ação side-scroll 2D, que possui aspirações aos títulos clássicos das séries Ninja Gaiden e Megaman X.
O título é uma marca definitiva da evolução do estúdio brasileiro no decorrer dos anos, uma prova do refinamento em relação as sprites produzidas, assim como a delicadeza das mecânicas que transformam a ação de Moonrider no power fantasy dos tokusatsus clássicos (não sabe o que é um tokusatsu? talvez eu esteja ficando velho…).
Pela apresentação, Moonrider traveste a imagem de um jogo retrô, mas ele traz consigo alguns refinamentos de game design mais moderno (como checkpoints, graças a deus), e nos ensina o caminho do ”skill issue” com sua gameplay extremamente desafiadora. Ao fim do dia, chegar ao fim do game é uma prova de resistência e de habilidade, acostume-se a morrer, bastante.
Mas ei, essa é a graça, né?
Acho que jogos mais recentes nos desacostumaram com o ato de adquirir o power fantasy da habilidade, e simplesmente facilitam o trabalho para nós desde o início. Moonrider é um game de ação que não vai lhe garantir o power fantasy logo de início, você vai conquistá-lo. Durante as missões/fases, você rodeia mapas a procura do ”chefão” da fase, e durante as arenas desse mapa, você terá a chance de provar sua destreza.
Seu arsenal é um tanto quanto básico de início, você corre, dá pirueta de diversas formas, rasga o pessoal com a sua espada, e dá umas voadora muito maneira de se executar. Parece simples, né? Então, é, mas não é, pois o game é aquele clássico ”simples bem feito”, e você vai perceber que se você não souber executar essas ações com maestria ao fim do jogo, então você terá um problema, amigão.
É notável mencionar, assim como apontei com suas principais referências, Moonrider segue um fluxo de mapas semi-lineares. Em algumas fases, é possível rondar os ambientes a procura de upgrades para o protagonista, assim como encontrar vidas adicionais, cura e ”mana” para se recalibrar durante a jornada da missão.
Os upgrades, ou ”chips modificadores”, fazem exatamente o que o nome propõe (duhh), que é te dar a possibilidade de mudar e transformar as suas abordagens, fornecendo uma boa variedade de combinações que até sustentam a possibilidade de rejogabilidade para o título, mas acredito que se você for rejogar, é para melhorar o seu desempenho nessas respectivas missões.
Sim, Moonrider é um jogo que praticamente te implora para que você faça speedrun dele. Fornecendo dados de avaliação ao fim de cada missão/encontro, o game dá muito valor para os jogadores entusiastas de speedrun, dando uma leve incentivada para aqueles que querem executar tudo perfeitamente (me leram feito um livro com isso ai).
Como eu disse acima, o jogo lhe incita para essa direção de rejogabilidade, mas num geral, a fórmula da obra é um tanto quanto… repetitiva, se assim posso dizer. Não num total, e o jogo termina exatamente antes de se tornar chato, e até mesmo fornece cenários diferentes que mudam o truque do funcionamento do flow do jogo. No fim ao caso, é exatamente aquele tipo de jogo que possui a duração correta para o que quer fornecer.
Apresentação impecável, e soundtrack também!
Se tem uma coisa que eu adoro nos jogos da JoyMasher, é direção de arte e as suas soundtracks. Cara, esse pessoal merece um beijo! Moonrider, conforme antes dito, tem muita inspiração aos clássicos da era 16-bit, e possui suas referências particulares aos clássicos tokusatsus que eram televisionados na TV aberta (eu particularmente ainda revejo alguns).
Os designs dos personagens fedem e cheiram ao descolado, assim como possuem um ótimo balanço de distinção para transmitir os níveis de ”ameaça” (em relação aos inimigos). A leve pincelada de distopia futurística, com uma sacada daora de Robocop no meio, mistura também o nosso querido cyberpunk edgyzão, construindo uma estética bem única e legal para o jogo.
E o que falar da soundtrack de Moonrider? Composto por Dominic Ninmark, uma coisa posso lhe garantir: ele sabia exatamente o que estava fazendo. Recebemos tracks singulares para cada missão do jogo, com variações entre partes das mesmas, transmitindo um senso de identidade marcante para cada pedaço da obra.
Ta duvidando? Sente só essa aqui:
Mas o que me cativou foi isso aqui
Moonrider tem uma história, sabia? Talvez não tão sólida e bem trabalhada como as mecânicas de jogabilidade, que de fato são a principal atração da obra. Mas Moonrider ainda tem um writing de respeito, writing esse que possui reflexões importantes em relação a realidade e história de seus criadores, história essa que praticamente compartilho e entendo profundamente, visto que sou brasileiro assim como eles.
Antes de mais nada, é necessário indicar o que é essa bagaça né? Bem, Moonrider, o nosso querido protagonista, nada mais é do que uma arma humana criada para sustentar a tirania do governo que o criou. Num ato de rebeldia e emancipação, Moonrider se averte contra seus criadores e sua programação, incitando uma jornada sangrenta de vingança durante o jogo.
Legal né? Vingança e tal, sair cortando uma rapeize fascista pela metade, acho isso tudo magnífico. A pessoa mais despercebida não dá muita bola e atenção pra esse writing e, como eu disse, com razão ao fim do caso, visto que esse não é o foco da obra em sí. Mas, como um bom historiador que sou, e um grande chato também, eu prestei atenção.
Uma prova, talvez, de resistência brasileira (pequenos spoilers daqui pra frente)
Uma coisa que aprendi no curso de História, é que nada vem do acaso, tudo há intenção, mesmo que não proposital. O discurso de ser ”neutro” mediante a uma situação de conflito, nada mais é do que o ato de fortalecer aquele que possui força dominante na balança do conflito. Sacou a pegada?
Então, durante os eventos da história de Moonrider, nos deparamos com alguns dos antagonistas comentando algo sobre uma revolução, e como essa revolução trouxe os aparatos e elementos que legitimam o poder do regime no jogo. E algumas provocações de Moonrider, nos levam a refletir sobre o que foi de fato essa revolução, e uma pergunta me inquietou durante esses diálogos: a tirania dos vilões de Moonrider, é travestida por um discurso de revolução.
Isso te lembra algo?
Acho que talvez seja importante declarar aqui e agora, que a Ditadura civil-militar de 64 no Brasil, foi, novamente, uma ditadura, ponto. Não existe essa de interpretar como uma revolução, não existe essa de me dizer que ”meu tio viveu a época da ditadura, e nada disso aconteceu com ele”, isso não apaga a tonelada de crimes e evidências que temos sobre uma ditadura, que de fato aconteceu no país. Posso ir além, e linko aqui os endereços para a leitura dos relatórios da Comissão da Verdade, vai lá, pode checar.
Você, meu leitor, deve estar se perguntando: ”Por que diabos escrever tudo isso, pra um jogo 2D de ação??”. E eu confesso que me perguntei a mesma coisa durante a confecção do texto, mas a verdade é que talvez a oportunidade seja valiosa demais para deixar passar.
Presenciamos nos últimos anos, e ainda continuamos a presenciar, tentativas sérias de ameaça e golpe contra a nossa frágil e embrionária democracia. O Brasil pode não ser um dos melhores exemplos de democracia no mundo, mas é uma prova concreta de que ela resiste e persistirá anos a vir, e Moonrider é um documento que comprova isso.
Puts, deixei mais complicado ainda
Para os historiadores contemporâneos, tudo é um documento, e não apenas os documentos ”oficiais” que são utilizados pelo maquinário estatal de determinada sociedade. O que isso quer dizer? Bem, isso significa que um vídeo-game pode ser um documento histórico.
Documentos históricos são objetos materiais, que carregam informações específicas de um passado longo ou recente, que podem ou não responder inquietações do presente: como, por que, onde, quando? Essas inquietações e dúvidas, se diferem em relação ao objetivo do historiador que as utiliza, portanto, tudo depende de uma questão de perspectiva e intenção.
Moonrider nos prova o seguinte: através de um joguinho magnífico de ação 2D, podemos deixar traços sutis da resistência que uma população teve, em relação as narrativas que tentam desmontar os pilares de sua democracia. Moonrider é não apenas uma carta de amor aos jogos 16-bits, é também uma crítica aberta aos eventos e indivíduos que nos assombraram durante os últimos anos no Brasil, e com certeza ainda continuarão a nos assombrar.
Lembra do que eu disse lá no começo do texto, que talvez isso tenha sido intencional ou não? Então, talvez tudo isso que eu esteja comentando seja apenas uma percepção particular que eu, e somente eu, tive em relação ao jogo, e talvez eu tenha apenas dito bobagens em relação a tudo. Mas, talvez, tudo isso possa ter sido intencional, e se não, pode ter sido resultado das inquietações e influências do presente momento, que incitaram os desenvolvedores a fazerem o que fizeram.
É cedo demais de apontar isso, afinal, estamos vivendo o calor do momento dessa história, mas uma coisa lhes garanto: no futuro, historiadores utilizarão Moonrider como um símbolo documental de referência para estudar o Brasil de 2023. E não, amigos, Moonrider não esconde que é um jogo que discute política, e eu adoro-o por isso. E bem, há muito o que se falar sobre isso tudo, mas eu tenho que me policiar e lembrar a mim mesmo e a vocês, que essa é uma Review de um jogo, né?
Considerações finais
Por fim ao caso, se você leu até aqui, você deve estar se perguntando se eu recomendo o jogo, e a resposta é simples: sim. Ué, você tava esperando o que?
Como uma ótima soundtrack e direção de arte/apresentação, gameplay frenética e desafiadora, Moonrider é o jogo perfeito para aqueles que querem saborear o simples bem feito, e ser atacado pela nostalgia dos jogos retrôs, que só mesmo a JoyMasher consegue reproduzir hoje em dia.
Conhecedor dos estudos históricos, amante da arte dos vídeo-games, streamer, ex pro-player de HearthStone, ilustrador e escritor.