Cinema
Torre do Terror – Coragem, o Cão Covarde e o terror que me moldou
Na infância, eu nunca tive muita chance de explorar o gênero terror. Em geral, filmes de terror eram algo que você via junto com os amigos, no cinema ou em casa, seja pra zoar ou pra criar coragem em grupo. Como uma pessoa que teve muita dificuldade em ter amigos na infância e adolescência, nunca houve chance de aderir a tais rituais. Tampouco tinha muito incentivo para ir atrás disso por iniciativa própria: Deparado com a seleção de filmes nas locadoras sem nenhum repertório prévio, a única referência que eu tinha eram as capas, que pareciam ser tudo a mesma coisa, não tinha como separar o joio do trigo. Então, durante muito tempo, o meu conhecimento do gênero foi exclusivamente por osmose cultural (Leia-se: Todo Mundo em Pânico) e preconceitos.
Depois que eu cresci e minha curiosidade desse gênero despertou, comecei a correr atrás do prejuízo. Vi os clássicos da Hammer, os slashers dos anos 80 e 90 e o terror contemporâneo que James Wan moldou. E a minha maior surpresa, além da grande variedade de obras que perdi, é que, mesmo sem saber, eu tinha tido uma iniciação no terror desde muito cedo. De um desenho que passava às tardes na TV.
Coragem, o Cão Covarde era um dos desenhos da leva inicial do Cartoon Network, criado por John R. Dillworth a partir de seu curta A Galinha que Veio do Espaço. O protagonista é Coragem, um cachorro que vive numa fazenda em Lugar Nenhum com o casal Muriel e Eustácio, o resmungão, que o detesta. Todo episódio mostra o Coragem tendo que impedir alguma assombração, criatura ou empresário sinistro que ameaça sua seus donos, que por sua vez nunca percebem o perigo. Não tem uma história contínua além de vilões recorrentes, o desenho quase nunca sai dessa fórmula. Mas nas mãos de Dilworth, é uma maneira de extrair diversas histórias criativas.
Qualquer criador vai te dizer o quão difícil é trabalhar dentro das limitações de um desenho infantil é complicado. Mas em muitos casos, as limitações são o que nos obriga a usar a nossa criatividade para pensar fora da caixa. Coragem, o Cão Covarde utiliza toda ferramenta disponível para apresentar aos pequenos a experiência de vivenciar uma história aterrorizante e até perturbadora, mas com leveza e humor suficientes para que as crianças consigam digerir.
O recurso principal de qualquer bom terror é a atmosfera, e a atmosfera de Coragem é simplesmente impecável. A trilha sonora vai do conforto da vida idílica da fazenda ao estranho e inquietante. A arte do desenho também é extremamente versátil, com cenários sombrios e ricos em textura que chamam a atenção do espectador. Mas o principal são os monstros, com designs que vão a da fofura enganadora, o grotesco, o grotescamente engraçado e o perturbador. Além disso, o programa sempre experimentava com estilos de arte, não era raro mesclar técnicas de animação tradicional, colagem, CG e até live-action, criando uma sensação intencional de estranheza, de algo que não pertencia a esse mundo.
O desenho sempre expandia os limites do que podia ser explorado, tanto num desenho infantil quanto no próprio meio da animação. E não há melhor personagem para conduzir o público nessas aventuras do que o Coragem. Um Cão Covarde™, mas inocente e carinhoso, sempre desamparado por quem precisa proteger, faz tudo desesperado e apavorado e quase sempre salva o dia sozinho e sem ninguém reconhecer o serviço que prestou. Mas ele nunca desiste, apesar de no fim das contas tudo que ganhe seja um susto do Eustácio. Com um personagem tão coitadinho e fácil de amar, você QUER ver ele desbravando os perigos, mesmo que você acabe rindo dos chiliques de medo absurdos dele.
Vou apresentar 4 episódios, cada um abordando temas de terror de diversas formas:
O DEMÔNIO DO COLCHÃO
Quando a Muriel reclama de dores nas costas por causa do colchão da cama, Eustácio o troca por um colchão amaldiçoado por ele ser de graça. Ao longo do episódio, a Muriel vai sendo possuída, ficando cada vez mais sinistra e encapetada. A forma de criar tensão mais apelona desse desenho é pegar o ser humano mais fofo e amável que é a Muriel e corrompê-la, e esse desenho faz isso MUITAS vezes. Mesmo com gags e piadas, a direção de arte, enquadramentos, cor e som do episódio não deve nada a um filme de terror tradicional. Imagino que tenha sido difícil vender à emissora o conceito de “O Exorcista para crianças”, mas esse episódio faz jus.
FRED, O ESQUISITÃO
Toda família tem aquele parente. Desagradável, incômodo, cuja presença deixa você ansioso, mesmo que você não saiba por que. E se você falar sobre isso pra alguém, você é o injusto. Ninguém parece perceber isso além de você, ou talvez os adultos simplesmente aprenderam a disfarçar e ignorar. O John R. Dilworth canalizou todo esse desconforto no Fred, o barbeiro sobrinho da Muriel. Com um sorriso sinistro, falando tudo em rimas, o Fred é acolhido na casa de braços abertos. Quando Fred e Coragem ficam trancados no banheiro, o público testemunha a sessão de tosa mais agonizante do audiovisual, assim como flashbacks de como ele ficou obcecado com cortar os cabelos alheios, tudo ao som da voz sedosa de Fred recitando poesia. A imagem de um barbeiro que corta o cabelo das pessoas com a intensidade de um serial killer simultaneamente perturbadora e hilária, mas quando o desenho consegue fazer um bolo de cabelos no chão ter um impacto de como se fosse tripas, é um exemplo perfeito de terror através da sutileza.
A ÁRVORE MÁGICA DE LUGAR NENHUM
O terror d’A Árvore Mágica de Lugar nenhum tem pouco a ver com os elementos sobrenaturais. Na verdade, a mensagem do episódio é algo bem comum e mundano. Com um começo semelhante a João e o Pé de Feijão, a Muriel recebe uma semente misteriosa ao voltar do mercado, que o Eustácio imediatamente despreza e joga pela janela. Em pouco tempo, a semente dá frutos, gerando uma árvore com um rosto humano (Não só humano como live-action) capaz de realizar qualquer desejo. Em pouco tempo, as dádivas que a árvore proporciona à Muriel e Coragem tiram do Eustácio o papel de provedor, causando nele uma imensa inveja.
Um comentário infeliz dele acaba virando um desejo indesejado, que deixa a Muriel doente. Incapaz de admitir a própria culpa e dar o braço a torcer, o Eustácio entra em uma briga inútil e prolongada com o Coragem para derrubar a árvore. No fim das contas, a árvore é derrubada, e nos últimos momentos de vida gera o antídoto para Muriel.
A história da Árvore Mágica, por baixo das roupagens sobrenaturais, é uma parábola sobre a natureza de um tipo específico de homem que a nossa sociedade permite existir. Criamos homens que acham que merecem bajulação e respeito só por existir, não importa o quão incompetentes eles sejam como provedores. E qualquer coisa que ameace essa posição de superioridade indevida revela o que eles realmente são: Egoístas, odiosos que preferem destruir uma coisa boa para todo mundo do que sofrer a “humilhação” de aceitar a generosidade alheia.
Oito anos antes de Breaking Bad, o Eustácio nos mostrava as consequências da masculinidade frágil.
PERFEITO
O último episódio de Coragem é também algo que muitas crianças e adultos conseguem se identificar. O episódio mostra as várias críticas do Eustácio ao Coragem, ele nunca faz nada direito, é um cachorro idiota, incompetente. Nisso, uma professora surge na casa para treinar Coragem para ser o cachorro perfeito. Ela aplica uma sucessão de lições rígidas e intransigentes, onde qualquer erro é castigado ou comparado com outro aluno “perfeito”. A pressão leva o Coragem a ter pesadelos (Ela exige que ele “durma perfeitamente!), com uma das imagens mais marcantes da série.
Esse tipo de pressão, de se te forçarem a se conformar em um padrão, é um mal que quase todos sofrem. Seja pela família, amigos, trabalho ou a massa amorfa da sociedade, somos constantemente cobrados, gerando estresse, trauma e comportamentos autodestrutivos para nós e as pessoas que nos cercam. A busca da “perfeição” é inútil e, na maioria das vezes, faz as pessoas terem vergonha de si mesmos. Isso é mais aterrorizante do que muito monstro.
Mas quando uma enguia amiga aparece na banheira (Não pergunta, aceita) e fala para o Coragem que as imperfeições fazem dele único, ele finalmente ganha a autoconfiança que precisa para se impo. Na prova final de perfeição ele usa a sua individualidade para gerar um resultado muito mais criativo do que a suposta perfeição que a professora queria, levando ela a se dissolver compulsivamente.
Agora em paz consigo mesmo, o Coragem termina a série sentando-se à mesa de jantar com Muriel e Eustácio (Até ele parece ter aceitado o cachorro), mais pleno e feliz do que nunca esteve.
Claro, o jantar acaba sendo a própria enguia, mas isso é de menos.
O Coragem foi um marco na animação televisiva como um todo. Em estética e temática, foi um dos desenhos mais sofisticados do seu tempo, elevando o tipo de história que poderia se contar na televisão. A capacidade de pegar situações típicas de ficção e extrair tanto humor quanto terror não é pra poucos, mas com certeza deixou uma grande impressão. Com criatividade e estilo, foi a iniciação de muitos no mundo do terror. Ele me instigava com histórias engraçadas, perturbadoras, com humor negro e emocionante, foi um preparo para os clássicos do gênero terror, e muito mais impactante do que muito filme que transborda sangue, tripas e sustos repentinos baratos.