Na ultima vez em que vimos Jesse Pinkman, ele estava urrando descontroladamente em um misto de alívio e trauma. Recém libertado de seu trabalho escravo nas mãos de uma gangue de neonazistas, Pinkman correu para o carro mais próximo e saiu dirigindo a toda velocidade, sumindo na noite. Diferente do sacrifício definitivo de Walter White, que abriu mão do exílio para salvar pelo menos uma das pessoas cuja vida ele arruinou, o desfecho de Jesse era muito mais ambíguo. Durante toda a série Breaking Bad, Jesse foi manipulado e explorado para o benefício dos outros, se afundando cada vez mais numa vida de crimes, perdas e arrependimentos. Ele conseguiu sua liberdade, mas sem nenhum indício de que isso bastaria para alguém no estado dele. Agora em El Camino, Vince Gilligan e sua equipe não só dão ao personagem uma resolução definitiva (que serve também como epílogo da série como um todo), mas também explora uma fase pouco abordada de sua vida.
El Camino começa a todo vapor, diretamente após o final de “Felina”. Após o massacre espetacular de Walter White, todas as autoridades estão atrás de Jesse, cujo único objetivo é fugir da cidade e recomeçar sua vida. A primeira parada é na casa de Badger e Skinny Pete, os únicos amigos que sobraram para Jesse. Quando ele aparece, eles não tem a menor preocupação com nada, jogando videogame e trocando xingamentos bobos, e é quase inacreditável pensar que Jesse, esse homem derrotado, traumatizado e com cicatrizes tanto físicas quanto emocionais, já foi assim também.
Esse tom contemplativo permeia toda a duração do filme. Jesse não vai conseguir seguir em frente sem antes amarrar as pontas soltas do seu passado. Ao longo do seu caminho rumo à fuga, vários demônios do passado vêm à tona. Isso é mostrado em uma série de flashbacks que compõem quase metade do filme e, na sua maioria, abordam o tempo em que Jesse ficou preso em cativeiro sob a supervisão do sociopata Todd (Jesse Plemons), que o leva para ajudar em tarefas, algemado e escondido na caçamba da caminhonete, completamente alheio à desumanização a qual o está submetendo. Essas cenas são difíceis de assistir, mostrando o nível do sofrimento que Jesse passou nesse período pouco explorado da série, e dão novo contexto tanto à morte brutal de Todd quanto ao estado que Jesse se encontra nesse filme.
Felizmente, nenhum desses flashbacks ou aparições de personagens clássicos chegam ao extremo do fanservice. El Camino é extremamente focado na história que quer contar, e tudo está em serviço da epopeia de Jesse em busca de recomeçar sua vida. Apesar de um roteiro com poucos acontecimentos grandiosos, o tom contemplativo do longa nos deixa passar bastante tempo na mente de Jesse, e nos permite ver em primeira pessoa todas as sensações e transformações que ele passa. Logo, a familiar ambientação em Albuquerque não provoca nostalgia no espectador e sim paranoia, pois cada minuto que Jesse passa na cidade aumenta o risco de ser capturado. O tom do filme vai e vem conforme o estado mental do protagonista, seja num flashback bem posicionado ou só pela atuação primorosa de Aaron Paul, que carrega quase o filme todo nas costas, transmitindo ao mesmo tempo vulnerabilidade e determinação.
O que realmente provoca nostalgia é a direção característica de Vince Gilligan que voltam como nunca neste longa. Estão de volta os longos planos de ambientação no deserto do Novo México, as montagens ao som de trilhas sonoras excêntricas e a fotografia e direção de arte que fizeram Breaking Bad se destacar na multidão. Há quem diga que o filme é só um episódio estendido da série, mas em se tratando dessa série isso é o maior dos elogios. O filme se preocupa muto em preservar a “sensação Breaking Bad” para o novo formato e a transição funciona muito bem. O filme mantém a lentidão característica da série, as situações inusitadas que beiram o cômico de tão absurdas, mas ainda assim não deixam de perder a seriedade e o gradual aumento de tensão que culmina numa catarse tão exorbitante que nem parece ser mais o mesmo filme. Isso tudo num roteiro econômico, enxuto e focado.
Sendo honesto, El Camino realmente não era uma história que precisava ser contada, mas ainda bem que foi. O longa é uma autêntica experiência Breaking Bad, com um personagem denso e complexo, numa narrativa ao mesmo tempo sofisticada e simples, que funciona tanto como um desfecho definitivo para o personagem de Jesse Pinkman quanto para toda a série, ao mesmo tempo em que prova que a visão técnica que o diretor Vince Gilligan adquiriu em suas décadas de televisão estão em pé de igualdade com muitos filmes de cinema. O filme é um exemplo de tudo que a série tem de melhor, e uma prova de que ainda consegue se superar mesmo seis anos depois.
Agora cadê aquele longa de 3:30h de duração do Huell, Vince? O povo clama por saber seu destino!