Cinema
Crítica | I’m Thinking Of Ending Things – as formas da ideia
I’m Thinking of Ending Things (2020) – ou Estou Pensando em Acabar com Tudo – é o novo filme de Charlie Kaufman, diretor e roteirista famoso por transformar seus trabalhos em complexas análises sobre a consciência. Responsável por escrever o roteiro de Quero Ser John Malkovich (1999) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), seu novo trabalho é baseado no livro homônimo de Iain Reid lançado em 2016.
Disponibilizada no dia 4 de setembro, essa nova produção Netflix já repercute pelo confuso rumo de sua história e pela quantidade de referências citadas em suas falas enigmáticas – que conversam diretamente com a trama. Com uma proposta cult, somos levados a uma história mais profunda do que seu estereótipo norte-americano sugere, carregada de diálogos filosóficos e cenas surrealistas. Nessa análise, explicarei minha interpretação geral da obra sem spoilers.
I’m Thinking of Ending Things tem propósito incomum e autocrítico em streaming
Inicialmente, a trama tem uma premissa simples: sua narrativa aborda uma personagem chamada Lucy (Jessie Buckley) que está viajando para a casa dos pais de Jake (Jesse Plemons), seu namorado. Ambos estudam física e embarcam nessa viagem discorrendo sobre diversos assuntos complicados por meio de suas peculiares formas de diálogo. Jake é um cara quieto e regrado, e ele está namorando Lucy, uma mulher descontraída e profundamente artística, há 6 semanas. Ao conhecer a antiga casa de Jake e seus pais, nos deparamos com as estranhezas do filme. Nesse jantar, demoramos para perceber a representação do local como um dos símbolos mais profundos do passado de Jake, assim como a alusão ao destino inevitável da vida – seu fim.
Em certo momento, percebemos a construção dos personagens convergindo para uma única entidade, algo que vem de uma única consciência. Esse aspecto se relaciona bastante com o conceito freudiano de ambivalência, a noção de que duas ou mais vontades opostas podem coexistir em uma única pessoa. Dessa forma, o filme trabalha com ideias contraditórias entre os personagens, deixando a resolução para o telespectador e revelando um problema que se agrava em outra camada do filme.
Logo no início de I’m Thinking of Ending Things, temos um monólogo de Lucy sobre a imaginação, que nos prepara para as metáforas que as falas representam. E durante a viagem, fica claro o quanto o filme quer explorar o mundo das ideias. De forma simplificada, o filme tenta ilustrar o movimento que ocorre quando abandonamos um pensamento profundo e voltamos ao âmago frio da realidade. Ele faz isso o tempo todo em seu roteiro, conflitando seus personagens com suas respectivas reflexões, em momentos de conforto e de dor. Esses momentos são bem encaixados com suas trilhas melancólicas.
A criação de uma ideia é um dos elementos centrais do longa
A forma como a história é contada assume os rumos mais variados de uma ideia, mas está presa ao estilo de filme norte-americano, reconhecendo-se como um produto cultural em sua metalinguagem. O que é irônico, pois presenciamos críticas à própria indústria cinematográfica, e I’m Thinking of Ending Things se prende a uma roupagem bastante comum, talvez assumindo a prisão de uma falsa liberdade – ou simplesmente adotando a imagem batida de uma produção da Netflix.
O universo do filme se divide entre a visão da física e da metafísica. No geral, ele apresenta diversas referências literárias e filosóficas, como Leo Tolstoy, Oscar Wilde e Guy Debord, traçando explicações para o pensamento e o comportamento humano. Além disso, aborda noções de física, colaborando na criação de uma ficção científica da mente. Esse elemento é o que permite que o filme se construa de uma forma específica, tomando a forma mais verdadeira de uma viagem, desconstruindo-se e reconstruindo-se indefinidamente, reavaliando as certezas e incertezas de uma realidade dolorosa e, ao mesmo tempo, confortável, que converge com um mundo metafísico de infinitas possibilidades.
As críticas que I’m Thinking of Ending Things faz podem ser vistas perante à arte em geral, mostrando como uma ideia toma forma, mas como ela é dependente da visão material do mundo exterior a ela. Em um diálogo no carro, Jake desabafa que as “novas ideias são criadas pelos jovens”, considerando o tempo como determinante da condição humana e do que perdura dela: suas criações. A questão da temporalidade é uma reflexão constante no filme, conferindo tons sombrios que refletem a solidão, a morte, as memórias e suas criações, retratando esses problemas quase como um terror psicológico, onde vemos o desespero de uma mente solitária que encontra conforto e espetáculo no ato de imaginar.
Em suma, I’m Thinking of Ending Things (2020) é um filme que se permite ser um pouco de tudo. Sob uma perspectiva simbólica, ele procura representar conceitos, como em Adaptação (2002) e O Homem Duplicado (2011). Também se reveste de um clichê norte-americano, ao mesmo tempo em que esconde pensamentos profundos sobre a existência, o tempo e as ideias. É um debate sobre o velho e o novo, a ciência e a arte. I’m Thinking of Ending Things permite que o telespectador crie a metátese em cima das teses e antíteses que se enfrentam e ecoam em falas marcantes e momentos subjetivos. O único aspecto que não se altera aqui é a morte, definida de forma clara desde o início, colocando sua metafísica em sincronia com a realidade niilista, sugerindo que sua única certeza é a condição temporal e, assim como a vida, o filme também tem o seu fim.
Jornalista, especialista em Metafísica e Epistemologia (UFCA) e Filosofia e Autoconhecimento (PUCRS). Sou apaixonado por cinema, filosofia, música e literatura. Confluo essas áreas na escrita das minhas críticas.