Cinema
Crítica: Spencer – A Hóspede Mal-Dita
Navegando no mar de pensamentos soltos e reflexões a deriva que é o Twitter, certa vez me deparei com a análise das narrativas de casa mal-assombrada, já tradicionais nos contos populares e nas histórias de terror, como sendo análogas ao processo de colonização.
As historias de famílias que se mudam para um local antigo, ignorantes quanto a história que aquele lugar vivenciou, sendo confrontados por fantasmas, manifestações da histórias que ocorreram, memórias das vidas que passaram por lá. As assombrações, incapazes de ir para o outro mundo por terem assuntos nunca resolvidos nesse, são obstáculos para os novos donos, que então buscam expelir os habitantes originais do lar, seja à força, ou com algum ato redentório que traga os espíritos de volta ao descanso. É fácil, num contexto de extermínio de povos originários, supressão de cultura e domínio de terras ancestrais, esse imaginário influenciar as obras de horror. Ainda assim, a análise ainda ignora o fato de que a Europa já acumulava fantasmas muito antes de por os pés na América.
Spencer mostra Diana, Princesa de Gales na sua estadia de três dias na Residência Sandrinham no Natal de 1991. Sem pretensão de criar uma biografia historicamente fiel, Pablo Larran e o roteirista Steven Knight buscam explorar a Lady Di enquanto a figura midiática que o mundo conheceu: Problemática, em constante atrito com a mídia e com a instituição da realeza britânica.
O filme já começa com um ato transgressor de Diana, que é apresentada perdida na estrada após fugir da escolta real que iria levá-la para a residência. Uma vez encontrada, a princesa é repreendida por burlar a programação oficial e alertada a seguir suas instruções a risca, com cada aparição pública, cada refeição, até a ordem dos vestidos a cada dia sendo predeterminados. As cortinas dos seus aposentos são costuradas para afastar a mídia, e a Princesa pode ir para a casa anexa na propriedade, a Mansão Spencer, onde passou a sua infância, sem serem acionados os guardas. A vida da Princesa Diana é um pesadelo, com cada um dos seus movimentos sendo premeditados, julgados e assessorados por terceiros, e as vontades dela não são nem a terceira prioridade. Um monólogo aponta ao fato que, para pessoas como a Diana, a população vê ela como valor monetário, algo que se pode pesar e se comparar com outros bens. Literalmente, ela estampa moedas.
Isso tudo, e ainda nem chegamos nos fantasmas.
O filme segue a mesma linha temática de Jackie, outro filme de Pablo Larran que explora o papel de uma mulher na política em uma sociedade que espera que ela seja um acessório bem comportado, mas dessa vez seguindo um caminho do horror. Os corredores labirínticos, claustrofóbicos e impregnados de história de séculos da realeza britânica, que parecem querer engolir quem ousa se perder por lá, e como o próprio filme diz, em lugares como esse o passado e presente são a mesma coisa.
Assim que ela chega, o quarto dela é recebido com um livro da Ana Bolena, outra rainha inglesa que levou a culpa das prevaricações do Marido. Se real ou não, a figura dos outro Além da sombra dos antepassados, a Diana ainda é assombrada pela própria família, que conformada com a ordem vigente e o status quo, são frios, distantes, consumidos pelo papel que são obrigados a performar e punindo quem sai da linha. Esse Hotel Overlook não é vazio, tem uma família inteira de Jack Torrances, mas ao invés de um machado ensanguentado, eles aterrorizam suas vítimas com etiqueta e cerimônias formais.
E a performance agonizante de Kristen Stewart nos conduz durante a crescente escalada de tensão. Uma esquete da série animada Mad fez o comentário acertado, embora infeliz, de que a atriz parece sempre querer estar em outro lugar. Essa sensação permanece no filme todo, não permitindo ao publico sentir alívio nem nas cenas mais calmas. Vemos a integridade mental lentamente ser destruída por protocolos, alienação das amizades e empregados que fiscalizam toda a rotina dela até ela finalmente ela surtar. Até a interação com os filhos, momentos raros onde Diana pode estar com quem ela ama, viram explosões emocionais que Charles e William não tem como ajudar senão estando lá junto com ela. A interpretação de Stewart expõe os atos de rebeldia de Diana como uma tentativa de auto afirmação frente a um ambiente que quer encaixá-la num molde. A bulimia dela, amplamente divulgada na mídia, é mostrada aqui como um ato de preservação de dignidade, uma afronta a quem quer controlar cada movimento dela. Mas cada resistência por parte dela é retribuida em maior força, e conforme o filme avança, Stewart traz o público para dentro da sua mente cada vez mais desbaratinada.
Atrás de Stewart, o que mais nos convida para o a mente de Diana é a primorosa direção sonora do filme, que acrescenta a todo o ambiente uma presença própria, dando forma as coisas invisíveis que impregnam a casa, e quando as câmeras fecham em closes do desespero da princesa, a paisagem sonora nos coloca na mesma dor que ela sente.
Entre os personagens, também temos Sally Hawkings como uma camareira, a unica amiga e confidente de Diana. A relação entre as duas é meiga, honesta e percebe-se que é algo construida a anos. Justamente por causa disso, o chefe da segurança da família real, interpretado pelo Thimothy Spall, manda ela ser afastada. Mantendo as referências a O Iluminado, o personagem de Spall seria o Dick Halloran. Ele exemplifica o sistema que ele serve, em que a individualidade deve ser suprimida para a função. Se em um momento ele dá um discurso empático sobre o que o povo vê a realeza, assim que ele percebe que essa abordagem não vai funcionar ele imediatamente muda de tom e põe a Diana na linha à força. No mundo que essa gente transita, ninguém é ingenuo ou ignorante, todos se contentam em fazer vista grossa.
Diferente de algo como Era Uma Vez… Em Hollywood, Spencer não oferece um verdadeiro final feliz. Todos sabemos que fim vai ter o conflito entre a Diana e a instituição que a prende. Assim como o Batman, estrelando o ex-colega de cena de Stewart, a história de Spencer sabe que no fim, o sistema sempre acha um jeito de sair por cima. Mas Spencer celebra o ato de se recusar a sucumbir, de que toda resistência, mesmo que simbólica, é um ato heróico.