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Crítica | Burning

Cinema

Crítica | Burning

Profundamente embasado na literatura de Murakami e Faulkner, Burning parte do mistério fictício para compreender a realidade.

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“Existem coisas, circunstâncias, condições no mundo que não deveriam existir, mas existem, e você não pode escapar delas e, de fato, você não escaparia delas mesmo que tivesse escolha, já que são parte do Movimento, da participação na vida, de estar vivo.” William Faulkner (Os Invictos, 1962) 

Faz tempo que o cinema independe da literatura e, ainda assim, é possível notar conciliações produtivas entre os filmes e os livros. Existe esse caráter maleável do cinema, que o permite adaptar histórias, incorporar elementos e rondar entre diferentes mídias, se tornando cada vez mais múltiplo. Essa é uma perspectiva para entender Burning (2018), filme sul-coreano de Lee Chang-dong, que é uma adaptação do conto Barn Burning (1983), do escritor japonês Haruki Murakami – inspirado no conto homônimo de 1939 do escritor estadunidense William Faulkner.

Vencedor do FIPRESCI Award no Festival de Cannes de 2018, Burning é um longa-metragem sobre o jovem escritor Lee Jong-su (Yoo Ah-in), que ao se relacionar com sua antiga colega de escola, Shin Hae-mi (Jun Jong-seo), e aceitar cuidar do seu gato durante uma viagem, acaba conhecendo Ben (Steven Yeun), um jovem com uma misteriosa vida luxuosa. O filme trabalha com elementos psicológicos de thriller, ao abordar um passatempo de Ben que ilustra o nome do longa, desenrolando a trama em um mistério intrínseco às suas questões sociais. 

Uma corrente de referências literárias 

Apesar de apresentar falas enigmáticas e ter um mistério central na trama, estruturado em metáforas, Burning é um filme bem explícito no seu entendimento, e fica claro que ele trata da disparidade entre classes sociais na Coréia do Sul, assim como da incerteza existencial que cerca uma geração mais jovem. É através de uma perspectiva sensorial que o filme retrata esse limbo – consequência da causa desse mistério. No entanto, a genialidade está na forma como o diretor mescla elementos da literatura de Murakami e Faulkner em sua confecção. 

Na primeira vez que assisti, eu não sabia que se tratava de uma adaptação de Murakami, e fui percebendo durante o longa, pois o filme incorpora elementos da literatura do autor que não estão presentes no conto adaptado – o gato, o telefone que toca, o poço, a dualidade de um protagonista sem dinheiro e alheio à sociedade diante de um antagonista rico e bem-sucedido. Isso revela um conhecimento de Lee Chang-dong como romancista, que imerge a história na própria autoria do autor adaptado. 

O protagonista alienado à sociedade, frustrado diante da realidade à qual ele não pertence, mas que não expressa isso explicitamente, carregando uma fúria até um ápice, é um aspecto clássico do autor japonês. Essa diferença social é até expressada em certo momento, com uma referência a O Grande Gatsby (1925) de Scott Fitzgerald. A situação serve para colocar Jong-su e Ben como opostos, que ainda assim compartilham de um mesmo sentimento.

Em detrimento da forma 

Apesar de trazer esse caráter misterioso da literatura do Murakami, com situações que parecem se abrir para uma interpretação, Burning tem uma certa clarividência e um tom conclusivo – que fica mais evidente numa segunda experiência. O que me faz pensar que não é um filme para ser decifrado ou entendido, mas sim apreciado e experimentado pela sua construção, pela forma como é feito. Me parece que ele utiliza recursos sensoriais justamente para transpor elementos da literatura de Faulkner, que é impossível de ser adaptada para o audiovisual – vide as fracassadas adaptações de suas obras. 

“O necessário, é, antes de tudo, dar mais atenção à forma na arte. Se a ênfase excessiva no conteúdo gera a arrogância interpretativa, as descrições mais extensas e completas da forma se calam.” Susan Sontag (Contra a interpretação, 1966) 

Lee Chang-dong utiliza o tempo e o espaço para representar, em certas situações, o fluxo de consciência de Faulkner, que abrange subjetividades muito íntimas de seus personagens. Enquanto as partes de sonhos e delírios podem parecer indícios de um surrealismo de Murakami, para mim, me parece uma forma de retornar às profundezas da decadência humana e geracional que Faulkner explora em suas obras, mas não na imagem descrita em lapsos, e sim na imagem mostrada, explícita, nesses mesmos lapsos. 

A trilha sonora mais aguçada e a angústia crescente de Jong-su, que remete a uma memória da sua infância – a mais clara alusão ao conto de Faulkner –, são o núcleo dessa mudança de ritmo do filme, em cenas mais fluídas e ilustrativas. E de fato, o filme pontua bem o momento dessa mudança, na cena em que os três personagens estão no sítio de Jong-su e toca Générique de Miles Davis, da trilha de Ascenseur pour l’échafaud (1958) – em um plano sequência que considero a melhor cena –, ressaltando Hae-mi em sua exposição completa que esconde o mundo fechado no qual vive – sua vontade de sumir, seu apartamento minúsculo.

O espaço, retratado em planos abertos e movimentos de câmera abrangentes, é palco para a relação dos personagens com suas próprias condições. É o caso de Jong-su, que normalmente está em sua casa bagunçada, cheia de elementos; ou no vazio do campo e do celeiro, acompanhado do silêncio absoluto ou do seu canto desafinado ou do som da TV ou da transmissão norte-coreana. Enquanto Ben sempre é mostrado em cafés ultra polidos, restaurantes límpidos ou sua própria casa luxuosa e cheia de pessoas felizes, sempre com trilhas relaxantes e tranquilas. A partir de certo ponto, Jong-su está sempre em conflito com esses espaços, em busca da verdade que se esconde em sua obsessão pelos celeiros em chamas.

A universalidade de Burning é o próprio vazio existencial 

Por diversos motivos, considero Burning (2018) um dos filmes mais importantes dos últimos anos. Não apenas pela frustração social que levanta – constantemente abordada no cinema sul-coreano –, mas também pela sua construção, que utiliza elementos de autores da literatura em prol do seu cinema, trabalhando isso diretamente em sua linguagem. Isso não é feito apenas para trabalhar um conceito dentro de um mistério metafórico, mas sim para despertar sensações, em especial a de vazio e incerteza, que configuram um mistério real para as atuais gerações do mundo todo, presentes em uma realidade que existe – e é decadente. 

Jornalista, especialista em Metafísica e Epistemologia (UFCA) e Filosofia e Autoconhecimento (PUCRS). Sou apaixonado por cinema, filosofia, música e literatura. Confluo essas áreas na escrita das minhas críticas.

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